Friday, September 28, 2007

4. ORIENTALISMO, PSICADELISMO E LSD


Estas três características, ainda que com particularidades na sua directa tradução para a produção musical alemã, abordam genericamente uma fusão de influências tipicamente associadas à época a que nos reportamos neste espaço – a segunda metade da década de 60 e inícios de 70. Este legado situa-se evidentemente num contexto global e não apenas na Alemanha, surgindo o nicho da costa oeste norte-americana, os grupos psych-folk britânicos e a psicadelia japonesa como alguns dos exemplos mais significativos. No entanto, no caso alemão, muitas das apropriações criadas figuram não apenas na primeira linha do universo kraut/kosmische, como também ocupam lugar de relevo para as aquisições da música contemporânea, pelo arrojo e pela assimilação instantânea de tais premissas à criação musical.
Apesar da anterior presença de motivos orientais por força do colonialismo, a marca orientalizante foi deixada nas artes sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, assentando num imaginário onde o exotismo muitas vezes expressava os aspectos tendencialmente ilícitos dos padrões sociais ocidentais. Este fascínio pelo Oriente acompanhou momentos críticos da evolução social ocidental constituindo-se como poderosa influência através das novas ideias da filosofia oriental, que, para além dos contributos artísticos veiculados, estimulou a emergência de novas alternativas.
Na evolução da música clássica e contemporânea, a presença do Oriente fez-se sentir a partir da obra Prélude à l’Áprés-Midi d’un Faune, de Claude Debussy, obra que marca também, segundo Paul Griffiths, o início da música moderna do ponto de vista estético e técnico. Os relatos de etnólogos nos anos 30 aguçaram a curiosidade de uma nova geração de músicos, como o caso de John Cage nas suas Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado (1946-48), obra que pretendeu alcançar a expressão musical das emoções permanentes da tradição indiana: o heroísmo, o erotismo, o maravilhoso, o júbilo, a dor, o medo, a ira, o ódio e a tendência comum para a serenidade. A introdução de vários objectos junto das cordas do piano (parafusos, borrachas, pedaços de madeira e de plástico) cunhou motivos rítmicos numa estética mais tarde fundamentada pelos estudos de Cage em Filosofia Indiana e Budismo Zen. O resultado traduziu-se numa maior importância conferida à multiplicidade de esquemas rítmicos empregues nas composições musicais em detrimento dos timbres harmónicos. Outros compositores influentes a abarcarem a influência oriental nos seus trabalhos, em parte como “libertação” do convencionalismo instrumental europeu e também como inovação estrutural da composição, foram Olivier Messiaen (sonoridades do gamelão balinês e fórmulas rítmicas indianas em Turangalila-Symphonie) ou Steve Reich (estudou, no Gana, a música africana – Drumming).
A ancoragem do krautrock ao Oriente fez-se notar em nomes como Dzyan, Popol Vuh, Yatha Sydra, Limbus ou Deuter, entre outros, onde as notas da instrumentação (cítaras, marimbas, tamburas) conferem o travo orientalizante.
Se o Oriente surge como salto em frente na música moderna, também a superação das barreiras da percepção e da vida mental motivou um passo adiante. O psicadelismo, nos seus vários quadrantes artísticos, acaba por exultar um conjunto de características muito vincadas, de onde se destaca a popularização da experimentação das drogas alucinogéneas, sobretudo o LSD. Se este facto foi um hino da contracultura – com Timothy Leary a ter papel decisivo –, a verdade é que a sua generalização teve grande importância na forma como as potencialidades da experiência psicadélica foram incorporadas na criação musical da época. Inúmeros são os exemplos no panorama musical global; mas no que à música alemã diz respeito, alguns trabalhos têm lugar de destaque, ainda que com roupagens distintas, ora privilegiando as viagens espaciais da electrónica (Tangerine Dream, Cluster, Klaus Schulze, Conrad Schnitzler), a candura folk (Bröselmachine, Emtidi), as ácidas incursões rock (Guru Guru), delírios freak (Ash Ra Tempel, Cosmic Jockers ou Pyramid), apelos místicos e esotéricos (Sergius Golowin e Walter Wegmüller), a experimentação avant-garde (Can ou Faust) ou a alucinação comunal hippie (Amon Düul), entre outros.


Rolf-Ulrich Kaiser e Seven Up, o zénite do psicadelismo alemão
De entre os inúmeros discos transportam o universo da psicadelia germânica, Seven Up, o álbum que resultou da colaboração dos Ash Ra Tempel com Timothy Leary, em 1972, surge claramente como um marco neste capítulo do krautrock. Deverá no entanto dizer-se que o que torna este trabalho uma referência não se limita estritamente ao disco rock produzido. Esse encontro nos Alpes suíços foi a tradução alemã do espaço subversivo e clandestino ocupado por Dr. Leary, que na época andava a monte, foragido dos EUA, a propagandear os efeitos terapêuticos e espirituais da toma de alucinogéneos e a consolidar a sua aura de guru da contracultura. Do encontro saiu também a confirmação da visão cósmica de Rolf-Ulrich Kaiser, jornalista alemão e mentor de editoras-estandarte da cena alemã, como a Pilz, Ohr e Kosmiche Musik. Este visionário, pela forma como direccionou a criação de um produto musical genuinamente germânico, foi o grande impulsionador das gravações de Seven Up, tendo estado também directamente envolvido nas sessões dos Cosmic Jokers e de outros discos como Tarot, de Walter Wegmüller (que foi o autor da capa de Seven Up), ou Lord Krishna von Goloka, creditado a Sergius Golowin.
Por entre deambulações alucinogéneas, Kaiser idealizou a edição de projectos que fundiram a abordagem psicadélica com cenários místicos que aludiam ora a idílicos bosques em plena floresta negra, ora a espaciais viagens inter-galácticas. Aliás, grande parte do seu trabalho foi o de cunhar as coordenadas da kosmische musik através da Kosmische Kuriere, etiqueta subsidiária da Ohr, que se dedicou, ao longo de 17 LP’s, a evidenciar os traços distintivos da música psicadélica alemã, conduzidos, para além dos nomes supramencionados, por Witthüser&Westrupp, Klaus Schulze, Wallenstein, Popol Vuh e Mythos.
Em Seven Up, a declarada intoxicação e a profusão de talentos inebriados não ocultou a excelência do material sonoro conseguido. A ideia foi a de desenvolverem um mapa musicado dos alegados sete estádios de consciência presentes na viagem psicadélica, que Leary havia já traçado. Gravado em Munstergasse, Berna, nos Sinus Studios, o disco é composto por duas faixas, Space e Time, conceptualmente enquadradas na idiossincrasia que por entre ácidas nuvens se avista do vigésimo quinto andar da trip de LSD. Aliás, com todas as inexactidões a que a situação convida, o nome do álbum terá sido uma homenagem à bebida que, qual remake beatleliana, ocultamente, acolheu algumas gotas de LSD por alguém colocadas e passada inocentemente a todos os elementos da banda. À semelhança de outros álbuns dos Ash Ra Tempel, Seven Up apresenta-se com duas facetas distintas: uma mais veloz, o lado A, Space, volúpia desarrumada de azulados riffs ácidos de Manuel Götching e orgiásticas vozes por entre alterações de registo que galácticos efeitos electrónicos vão situando em “Downtown”, “Power drive”, “Right hand lover” e “Velvet genes”; e outra em toada mais pausada, no lado B, Time, encenação menos exuberante, sombria, em contínua paranóia sintetizada que já antes fazia sentir-se, e que nesta altura destaca aspectos mais recônditos da espiral descendente de “Timeship”, “Neuron” e “She”.

Friday, September 21, 2007

3. O RENASCER DA IDEOLOGIA POLÍTICA E CRÍTICA SOCIAL

Os anos que se seguiram ao final da II Guerra Mundial ficaram conhecidos na Alemanha como o período do Wirtschaftswunder, o milagre económico, o renascer das cinzas da poderosa indústria e economia germânicas. Durante estes tempos, e apesar das ajudas condensadas no famigerado Plano Marshall, as nações aliadas no geral tiveram um papel bastante castrador, com o desmantelamento de inúmeras indústrias e o confiscar de inúmeras patentes, propriedade intelectual de elevadíssimo valor. A geração que atravessou as vicissitudes do conflito mundial, e que agora empreendia um trabalho notável de recuperação, carregava igualmente o estigma apocalíptico associado às ideologias políticas radicais. Este estigma ou trauma reflectia-se numa atitude de passividade e aceitação das condições externas que lhes eram impostas, sem protestos, numa capitulação total e aniquiladora da expressão de um povo. Assim, paralelamente ao crescimento económico prodigioso, assistiu-se ao congelamento político e ideológico das massas, e consequentemente da música popular alemã. Continuava a falar-se de política é certo, mas num circuito de elite muito restrito, na academia musical, e evitava-se a todo o custo assumir posições que perturbassem o equilíbrio vigente.
Durante os anos do milagre económico produziu-se um outro milagre, a polinização da música alemã pelas sementes do rock através dos inúmeros soldados americanos que se encontravam em solo germânico. Refira-se a título de exemplo os Monks, conhecidos postumamente como os anti-Beatles, cuja formação era essencialmente composta por oficiais americanos estacionados na Alemanha. Longe de casa, num ambiente onde gozavam de uma liberdade assinalável, acabaram por produzir música classificada pela imprensa alemã como über beat, pois tinham uma essência bem mais pesada do que qualquer coisa que pairava na Europa ano de 1966.
A crítica social, política e ideológica volta a ser reintroduzida no discurso musical, no mesmo momento que emerge o fenómeno Krautrock, um fenómeno que se alimenta de inúmeras influências, em particular da importação norte-americana acima mencionada. Conduzido por uma geração que nasceu sensivelmente no ano zero (1945), que assim não teve qualquer contacto com a ideologia nazi e que, de certo modo perplexos pela passividade ideológica da geração anterior, vão apresentar críticas sociais inauditas no panorama musical.
Um grande número de bandas irá ter a sua origem nas comunas, experiências pragmáticas de reorganização da estrutura social que proliferavam pela Alemanha, numa reedição das contraculturas e movimentos hippies norte americanos e britânicos dos anos 60. As comunas não eram novidades no panorama social mundial. De cariz religioso, político, igualitário, cooperativo ou espiritual, sempre fizeram parte da vivência social humana. Como tributo a estas experiências, o grupo alemão Oktober grava em 1977 “Die Pariser Kommune”, uma ópera rock onde é narrada a história da famosa comuna de Paris do século XIX.
De entre as variadas comunas alemãs, uma delas destaca-se pelo seu contributo musical. Tomando para seu nome o deus do sol egípcio seguido de uma personagem da ficção turca, os Amon Duul nasceram em 1967, precisamente como comuna política radical de artistas sedeados em Munique. Esta comuna atingiu rapidamente o estatuto de culto pelas suas improvisações livres, que tinham lugar, na maior parte das vezes, em eventos organizados por movimentos políticos juvenis. A atitude prevalecente era de valorização da liberdade criativa e da participação comunitária, e desprezo relativo pelas capacidades ou competências técnicas dos indivíduos enquanto músicos. A formação do grupo era extremamente fluida. Quem fazia parte da comuna também tocava no grupo, independentemente das habilidades musicais que possuísse. Contudo, emergiu uma facção dentro da comuna que era bem mais ambiciosa, convencional e estruturada musicalmente, o que deu lugar a uma cisão em 1969 com a formação de dois componentes distintos: Amon Duul I e Amon Duul II, os últimos dos quais ainda hoje subsistem.
Embora não tão bem sucedidos no plano comercial como os seus sucessores, os Amon Duul I condensam em si o espírito de uma alegre experiência de libertação criativa, de igualdade entre todos os membros de uma comunidade, tendo acabado por produzir neste processo alguns dos discos mais interessantes da música alemã do século passado.
Enquanto que os Amon Duul I apostavam na própria forma de construção musical, no momento da improvisação como manifesto, outros grupos apostavam em formas bem mais directas e convencionais de transmitir as suas ideias políticas. A crítica social passou a ocupar uma posição de destaque também nas letras e nos concertos. Os Floh de Cologne eram um exemplo claro disso mesmo, um cabaret musical, espécie de teatro de revista nas actuações ao vivo, com produções teatrais sociopolíticas notáveis, onde se mesclava a sátira, o rock e o teatro. Contavam nas suas fileiras com o activista político Dieter Suverkrup, que escrevia as letras, que tinham um papel de monta na interacção com o público. O primeiro disco era um manifesto pacifista, chamando-se muito simplesmente “Vietnam”. Seguiu-se “Fliessbandbabys Beat-show”, “Rockoper Profitgeiger”, e finalmente “Lucky Streik”, um álbum ao vivo que reflecte tudo aquilo que temos vindo a escrever. Manifesto anticapitalista, revela uma particularidade bem interessante: quando as vozes se levantam para declamar, conversar ou cantar, todos os restantes instrumentos, guitarras, baterias, saxofone, entre outros, baixam o seu volume para que o conteúdo da mensagem fosse integralmente assimilado pela plateia.
Embora os discos de estúdio não o revelem, ao contrário daqueles que os Floh de Cologne gravaram, também os Guru Guru se esforçaram por transmitir ideias políticas através da sua música. Os seus concertos, nos finais dos anos 60 e princípio dos anos 70, tinham como pano de fundo uma orientação política de esquerda. Eram organizados em conjunto com a União de Estudantes Socialistas Alemães, e pautavam-se pela declamação de textos de cariz político entre as músicas. Artesãos de espectáculos extravagantes e anarquistas, alguns dos membros dos Guru Guru também viviam em comunas na região rural de Odenwald, onde experimentaram intensivamente estados alterados de consciência através do consumo de alucinogéneos. Mas isso será uma outra história, material para outra influência relevante no contexto do Krautrock, um estilo que reflectiu e contribuiu para o despertar da dormência política e ideológica do povo alemão.

Monday, September 10, 2007

2. A ELECTRÓNICA, NOVAS TECNOLOGIAS AO SERVIÇO DA COMUNIDADE

Um pouco à imagem das mais variadas disciplinas artísticas, o crescente uso da tecnologia revelou-se decisivo no caminho que a música popular trilhou. Este facto tornou-se mais visível, fundamentalmente, a partir da década de 60, quando a massificação dos recursos tecnológicos disponibilizou instrumentos electrónicos capazes de recriações rítmicas, tímbricas e melódicas em registo pop, isto é, próximas de um registo musicalmente mais acessível ao vasto público, capazes de provocar aprazíveis e consonantes melodias nos ouvidos de todos os que as escutassem. No entanto, dizer que a música electrónica somente neste período adquiriu notoriedade será grosseira imprecisão, sob pena de escamotear um período precedente de grande difusão da mesma, sobretudo desde o final da Segunda Grande Guerra Mundial, em que a criação de variados artefactos electro-acústicos e electrónicos surgiu, um pouco por todo o mundo, associado a um vasto leque de jovens compositores avant-garde, que elaboravam as suas criações no contexto dos departamentos universitários, em institutos de pesquisa ou anda no seio de poderosas empresas – a música contemporânea experimental.
De entre os recursos que contribuíram para a chamada “democratização da música electrónica” encontram-se os sintetizadores, dispositivos capazes de gerar e/ou manipular sinais electrónicos usados na criação, gravação ou em performances musicais, em que os sinais eléctricos equivalem a sons (notas musicais) através da sua ligação a amplificadores. De entre os sintetizadores que mais significativamente contribuíram para que a música electrónica entrasse definitivamente nos circuitos comerciais, o Moog tem lugar de destaque. Criado por Robert Moog, um Engenheiro Electrónico de Nova Iorque, em colaboração com Herbert Deutch (um académico da Universidade de Hofstram em Long Island) e apresentado na convenção da Audio Engeneering Society em 1964, foi inicialmente visto como uma curiosidade e apenas mais tarde fez notar de forma clara a vasta gama de possibilidades que abria à música popular, estabelecendo-se como um marco dourado na indústria musical. Funcionalmente, apresentava características que tornavam a sua utilização vantajosa: era mais pequeno – tendo em conta as grandes dimensões dos instrumentos electrónicos precedentes, que por isso mesmo ficavam quase sempre irremediavelmente confinados aos estúdios –, mais estável e permitia ao seu manipulador um controlo mais efectivo e preciso da miríade de sons que comportava. Donald Buchla, nos E.U.A., e Paul Ketoff, em Itália, no mesmo período, desenvolveram sintetizadores comerciais usando o mesmo princípio – o controlo da voltagem – sem conseguirem, porém, o nível de aceitação pública conseguido pelo Moog. Este sucesso encorajou a indústria à sua produção, o que provocou o aperfeiçoamento do produto a preços mais reduzidos, possibilitando a migração de instrumentos de música electrónica das instituições e do circuito académico para as casas de compositores e músicos.

KRAUTROCK E KOSMISCHE MUSIK, ECLECTISMO E AMBIVALÊNCIA

Ars longa, vita brevis.

Aforismo romano

“There is a time in the span of civilizations when creative energy and the human spirit are wholly, if briefly focussed. When this occurs culture in all its manifestations reaches its zenith. The moment passes; civilizations decline, only to be replaced by others. This process of life appears cyclic.”
Sätty, Time Zone (1973)

Com estes breves ensaios procuramos traduzir em palavras algo que deve – sublinhe-se o imperativo – ser experienciado auditivamente. Para este assunto as palavras afiguram-se no mínimo insuficientes, no máximo irrelevantes, pelo que a audição das obras citadas é condição necessária para a compreensão do texto. Trata-se do zénite de uma cultura musical, uma explosão de energia criativa num espaço e tempo muito precisos e limitados, para utilizar as palavras do artista plástico germânico Wilfried Sätty, expoente máximo do psicadelismo norte-americano.
Nascido Wilfried Podreich no ano de 1939 em Bremen, cidade de história milenar, da qual dois terços foram reduzidos a escombros numa mão cheia de noites de infernais bombardeamentos aliados, descreveria anos mais tarde os cenários apocalípticos onde passara a sua juventude como um gigantesco recreio surrealista. Passado o tempo das brincadeiras infantis ladeadas por destroços, acabou por emigrar para os Estados Unidos no início dos anos 60, pois o estéril panorama cultural da Alemanha do pós-guerra, durante os anos do milagre económico, não oferecia as condições que uma mente inquieta como a sua necessitava. Este panorama viria, contudo, a inverter-se, e quando escrevia as reflexões supracitadas para a introdução do seu magnífico trabalho pictográfico, Time Zone, notava-se já alguma nostalgia pela experiência americana psicadélica, que no ano de 1973 esmorecia e decaía, afogada nos pântanos utópicos que se revelavam estéreis e ingénuos. O idealismo dava lugar ao pessimismo. Inversamente, do outro lado do atlântico, a sua terra natal efervescia agora de criatividade e, muito provavelmente, Sätty haveria de se deleitar na companhia das personagens maiores do drama musical alemão dos anos 70.
O fenómeno krautrock ou kosmische musik que emergiu na Alemanha nos finais da década de 60, designa um cenário musical pontuado pela experimentação e pela inovação, cujas influências, fontes inspiradoras e movimentos artísticos precedentes, acabam por colocar seriamente em causa a denominação convencionada. É que não se trata apenas de música rock, ou de rock alemão para o efeito, nem apenas de música cósmica com pretensão de uma qualquer experiência mística. Esta é aliás uma ideia que se deve, em parte, ao trabalho de Julian Cope – Krautrocksampler – que, numa tentativa de produzir a primeira obra de referência sobre o seu “bem-amado” krautrock, acaba por dar maior enfoque a esta vertente particular. De qualquer forma, trata-se de uma leitura indispensável pois o livro está repleto de informação histórica, curiosidades, excertos de entrevistas e conversas com os músicos, para além de uma lista com os cinquenta melhores discos de krautrock que, escusado será dizer, é bastante discutível.
Tal como os trabalhos de colagem de Sätty, os seus posters repletos de elementos dissonantes e contraditórios, um efeito que alcançava através da sobreposição de fotografias que encontrava nas revistas da actualidade com gravuras vitorianas que desenterrava da sua biblioteca de livros antigos, também o krautrock parece um manto heteróclito de elementos musicais estranhos, personagens improváveis e influências múltiplas, que oferece resistência à categorização e descrição. Muita tinta já foi derramada sobre este assunto, e aqui oferecemos uma entre várias interpretações possíveis.
Não desejando fazer tábua rasa do que até ao presente momento os críticos, escritores, radialistas, apreciadores ou veraneantes curiosos disseram sobre este estilo musical, e almejando dele produzir um retrato fiel, procurámos a todo o custo evitar as opiniões espartilhadas e incompletas que grassam um pouco por toda a parte, decorrentes da análise unitária das suas partes constituintes, sejam elas o misticismo de alguns músicos e o pragmatismo de outros, a loucura criativa dos mais aventureiros ou o convencionalismo comercial dos mais cuidadosos.
Hipotetizamos que o facto de muitos músicos desde sempre terem recusado a designação de krautrock para os seus trabalhos decorre em larga medida da visão em túnel que inúmeras pessoas lhe devotaram ao longo do tempo, salientando apenas um ou outro aspecto singular. Sabemos que a originalidade e a diferença eram elementos bem prezados pela maioria daqueles que escreveram, nos sulcos do vinil e nos palcos dos concertos, a história do krautrock – afinal eles não queriam simplesmente ser lançados num qualquer saco pré formatado.
Este conjunto de breves ensaios, parte da premissa que este fenómeno deve ser analisado na sua globalidade, como objecto total, um vitral composto por mil e um pedaços de cores diferentes.
Quando o krautrock é encarado como um todo, a sua essência revela-se, embora esta seja de difícil tradução ou transposição para o papel. De facto, as únicas palavras que parecem descrever adequadamente este cadinho de experimentação e criação, são respectivamente eclectismo e ambivalência, duas características intimamente associadas entre si. Pelo eclectismo referencia-se a multiplicidade de influências que convergiram nesta música, entre as quais se destaca o minimalismo, o surrealismo, a música contemporânea experimental, a electrónica, o jazz e a improvisação, o psicadelismo e as ideologias políticas radicais. A ambivalência decorre da conjugação destes elementos, por vezes contraditórios, sob uma única designação comum: krautrock. A experiência de ambivalência é simples e fácil de replicar em qualquer domicílio. Basta ouvir alguns dos discos que foram catalogados e reunidos sob este singular epíteto num registo aleatório. Através deste exercício torna-se possível que dos arranjos barrocos, complexos e elaborados de Amon Duul II o ouvinte passe para o minimalismo rítmico ascético dos Neu!, e que após a audição de uma das múltiplas experiências psicadélicas de Manuel Göttsching se encontre súbita e inesperadamente no seio de um concerto politizado dos Floh de Cologne. E isto apenas para salientar a ambivalência entre os vários grupos, pois esta manifestava-se igualmente dentro de cada projecto individual. Esta propriedade dava ocasionalmente lugar a cisões, e os músicos em litígio acabavam por dar à luz outros tantos projectos de música inovadora e vanguardista. Um dos exemplos mais flagrantes é a formação inicial dos Tangerine Dream – Conrad Schnitzler, Edgar Froese e Klaus Schulze – que após a gravação do primeiro registo discográfico seguiram caminhos separados em sintonia com as suas idiossincrasias.

1. MINIMALISMO, MOTORIZAÇÃO E REPETIÇÃO

O minimalismo, enquanto movimento artístico, nasceu no seio das artes visuais, passando posteriormente a fazer parte do léxico musical através do trabalho de compositores norte-americanos como La Monte Young, Terry Riley, Steve Reich ou Philip Glass. O termo foi cunhado pelo compositor Michael Nyman em 1968, e embora já conte com algumas décadas de existência não existe um consenso generalizado em relação ao que designa. O escritor e compositor Kyle Gann identifica nove traços comuns à música minimalista, fazendo a ressalva que não existe uma única obra ou compositor que condense todos eles. Estas características são: a harmonia estática; a repetição de motivos breves; a utilização de processos algorítmicos, lineares, geométricos ou graduais; a batida constante; a instrumentação estática; a “metamúsica” ou efeitos não planeados decorrentes de processos estritamente delineados a priori; as afinações puras; a influência de músicas ou culturas não-ocidentais; e por último, uma estrutura audível.
Ao longo dos anos a música repetitiva foi associada, de uma forma negativa, ao thanatos freudiano, a pulsão de morte, embora diversos autores apresentem visões bem distintas. Simplificando ao máximo (ou ao mínimo, para fazer jus ao tema), poder-se-ia afirmar que o minimalismo procura deitar fora o supérfluo de forma a salientar o essencial, que permanece na obra musical. A simplificação extrema levou a que inúmeras vozes críticas se insurgissem, com a acusação inquisitória de monotonia e esterilidade. John Cage acabaria por lhes responder: “In Zen they say: If something is boring after two minutes, try it for four. If still boring, try it for eight, sixteen, thirty-two, and so on. Eventually one discovers that it is not boring at all but very interesting.”
Da repetição interminável de motivos como “Trans-Europe Express” e “Autobahn” nas letras dos homens-máquina Kraftwerk, passando pela colaboração do violino minimal de Tony Conrad com os teutónicos Faust, até aos inúmeros discos de Klaus Schulze em que este limitava a paleta instrumental a um único elemento, o sintetizador Moog, o minimalismo acabou por se infiltrar na obra de um sem número de músicos alemães deste período. Contudo, encontrou uma das suas expressões maiores num dos elementos mais significativos da obra musical dos Neu!, o ritmo motorik. Este neologismo condensa em si duas palavras alemãs, “motor” e “musik”, e refere-se à depuração do formato convencional de uma música rock, com os seus coros, versos, introduções e mudanças, para um único ritmo 4/4, que o baterista Klaus Dinger repete interminavelmente durante toda a faixa. Embora isto possa parecer bastante monótono quando escrito ou falado, quando ouvido provoca um sentimento poderoso, de um avançar fluído, contínuo e interminável, associado por vezes ao conduzir na auto-estrada. As guitarras de Michael Rother, a outra face dos Neu!, poderiam complementar e compensar o ritmo de Dinger com variações melódicas, mas isso não acontece. Rother repete ele próprio o procedimento criando drones harmónicos, tocando uma única nota ad infinitum, material sonoro que depois era sujeito a numerosos overdubs. Os resultados são notáveis. As mudanças tímbricas passam a dominar a música, por oposição às mudanças harmónicas que dão corpo ao rock convencional. O corte estava consumado, e os Neu! trilhavam auto-estradas por territórios até então desconhecidos do rock. Os norte-americanos Sonic Youth acabariam por lhes prestar tributo numa faixa intitulada “Two Cool Rock Chicks Listening To Neu!”.

Sunday, September 09, 2007

TONY CONRAD & FAUST: OUTSIDE THE DREAM SYNDICATE (1972)


A colaboração dos Faust com Tony Conrad evidencia de forma notavelmente transparente uma das premissas que esteve na base do movimento da música alemã que aqui destacamos, ao acoplar o virtuosismo e a genialidade de músicos de um grupo rock à directa introdução das castas mais vanguardistas da música contemporânea experimental - característica que, aliás, se confunde com os próprios Faust. O resultado final combina o minimalismo e os drones eternos de Conrad com a marca pulsante e hipnótica da conjugação dos elementos dos Faust que participaram na gravação do álbum – Jean-Hervé Péron no baixo, Werner “Zappi” Diermeier na bateria, Robert Sosna nos sintetizadores e Uwe Nettelbeck na produção.
Desde o início da década de 60 que Tony Conrad integrou o “The Theatre of Eternal Music”, um colectivo experimental de músicos – juntamente com La Monte Young, John Cale, Marian Zazeela e Angus Maclise – que esteve na origem da explosão do minimalismo na música. O grupo combinava a amplificação eléctrica com teclados, percussões, notas rasgadas e dissonantes de guitarra, focando-se nos detalhes microtonais. Conrad, no entanto, cunhava o seu contributo no uso da dissonância e nas especificidades da distorção, algo transportado para os Velvet Underground por John Cale. No início do Outono de 1972, Conrad, que possuía já algum background pelos circuitos cinematográficos experimentais, encontrava-se pela Alemanha ocupando-se de uma instalação de La Monte Young sobre os Jogos Olímpicos de Munique (“Documenta”) pelo que a sugestão de uma eventual colaboração futura uma vez deixada por Nettelbeck em Nova Iorque, tinha então uma boa oportunidade de consumação.
A atmosfera comunal de Wümme terá favorecido o tom hipnótico dos registos gravados, plenos de batidas metronómicas, persuasivas espirais de violino e linhas impecavelmente delineadas de baixo, sugerindo uma deliberada impessoalidade onde simples relações entre elementos criam ilusórias percepções de complexidade desajustadas face aos meios empregues.

“There was this people hanging around out there, i didn’t know who they were. It was this people Faust. And they had been, to some substantial degree, incarcerated in this farmhouse for months, and they had they partners and sexual liaisons and different social complexities enacted on a long-term basis within this farmhouse. It was a microcosm, where everything seemed to have been evolving in some strange way over the course of months and months. It was no wonder that they really didn’t have a lot of involvement with me, and I thought of them as musicians that I could use in my record. But Uwe said that they wanted to do stuff too, so we did one that was my style, and one that was more like a rock’n’roll style. That’s how there’s two sides. They don’t remember working with me… there were probably many reasons for that, including the fact that somebody must have been burning a pot field around were they were working, because there was so, so much pot smoke in the air. It was incredible. And who could remember anything under those conditions…”.
Tony Conrad in Faust, Stretch Out Time:1970-1975, Wilson, A. (2006)

“From the Side of Man and Womankind”, o “lado de Conrad”, assume-se como um manifesto minimalista, onde mudanças de timbre e de ritmo são quase imperceptíveis. O baixo e a bateria criam uma espécie de batimento cardíaco enquanto o violino de Conrad vai respirando e gritando sem, no entanto, se mover. “From the Side of the Machine”, o “lado dos Faust”, revela-se menos mecanizado; as notas de baixo libertam-se, as batidas adquirem alguma dose de ritualização e Sosna fornece ondas de space synthesizer que acolhem a alta tempestade eléctrica do violino de Conrad.
A edição do álbum marcou a possibilidade de uma editora de cariz popular (a Caroline, subsidiária da Virgin) lançar um álbum de inspiração clássica ou avant-garde, tornando-se “Outside de Dream Syndicate” a primeira versão de um registo do Teatro da Música Eterna a ser acessível em disco, permeabilizando as fronteiras entre a arte erudita e arte popular.
Em 1992 a edição em CD vê a luz do dia (Table of the Elements) e dez anos mais tarde, em edição comemorativa do trigésimo aniversário da sua gravação, mais material que havia sido gravado é incluído (“The Dead of the Composer was in 1962” e “The Pyre of Angus was in Kathmandu”). Também eterno.