Wednesday, January 23, 2008

CLUSTER, do negrume sideral ao microcosmos açucarado

Durante a sua primeira digressão pelos Estados Unidos em 1996, um jornalista do Chicago Tribune apelidou os Cluster de “20th Century Music’s Best Kept Secret” ao que um dos membros do duo, Moebius, responde de forma categórica: “we were never any good at business”. Apesar de ser um lugar comum afirmar que aquelas coisas que são verdadeiramente inovadoras, pelo próprio facto de o serem e assim parecerem descontextualizadas na altura em que foram criadas, nunca foram lucrativas, e que apenas aqueles que copiam os originais algum tempo depois, em ambientes mais propícios ao comércio, é que retiram os proveitos, este parece assentar que nem uma luva ao trabalho dos Cluster. Mas antes de analisar as gravações deste projecto e procurar compreender o seu carácter e personalidade, afigura-se imprescindível dele fazer uma breve análise genealógica, uma pequena incursão pelo passado de duas das figuras de proa do krautrock que estiveram na sua base: Dieter Moebius e Hans Joachim Roedelius
Dieter Moebius nasceu em 1944 na Suíça, colocando mais uma vez este país na trajectória do krautrock que já havia visto nascer os famigerados Brainticket. Estudou arte em Bruxelas e na Akademie Grafik de Berlim. Na cidade germânica Moebius repartia a sua vida entre os estudos diurnos e o trabalho de cozinheiro nocturno. Decorria o ano de 1969 quando travou conhecimento com Conrad Schnitzler, na altura membro chave da fervilhante comunidade artística da cidade, que o apresentou a (Jo)Achim e convidou a integrar o grupo Kluster, um encontro furtuito que iria alterar de forma radical o seu percurso pessoal.
Hans Joachim Roedelius nasceu em 1934 na Alemanha, no seio de uma família de classe média que assegurou que nada faltasse ao pequeno rapaz, desde as festas da sociedade berlinense aos jogos de futebol do Hertha de Berlim. Autodidacta confesso e convicto, a juventude de Roedelius é consideravelmente distinta da dos seus futuros comparsas na cena musical alemã dos anos 1970, uma vez que estes, na sua maior parte, haviam nascido por volta do ano zero (1945), quando Achim tinha já 11 anos. Antes da guerra, o pequeno Achim viveu uma infância idílica, participando inclusivamente em vários filmes de propaganda produzidos pelo Babelsburg UFA Film Studios, que na altura apenas ficavam atrás dos estúdios de Hollywood. Ao primeiro contacto com as artes e subsequentemente com o imenso poder destrutivo do homem durante o conflito mundial, seguiram-se os anos da hegemonia comunista na parte oriental de Berlim. Depois de uma primeira fuga para o ocidente, Roedelius regressa e é imediatamente recrutado pelo DDR Volksarmee, do qual viria a desertar, um acto que lhe valeu dois anos de cadeia e trabalhos forçados nas minas de carvão. Foge novamente para a metade ocidental da cidade, onde conhece Schnitzler, aluno de Joseph Beuys na Academia de Artes de Düsseldorf, com quem assume a direcção do conjunto de música de câmara Geräusche (Noises), composto por uma mescla de indivíduos cujo ponto de contacto era não saberem tocar qualquer instrumento. Sendo o duo igualmente desprovido de qualquer educação musical, e não existindo qualquer gravação das suas performances, apenas podemos imaginar a cacofonia que este colectivo debitaria.
A música havia fecundado para sempre o espírito dos dois artistas, tanto que a discografia completa de Roedelius ascende aos 50 títulos ao passo que a de Schnitzler já entrou na casa das quatro centenas. Estes prosseguem então os seus desígnios musicais com o colectivo Plus/Minus que, como o projecto precedente, viria a ter uma vida breve e não faria qualquer gravação. Ainda antes dos C(K)luster, Roedelius, em associação com a comunidade Living Theatre, forma os Human Being, um colectivo de 8 músicos, que se preocupava essencialmente em extrair os sons mais estranhos dos instrumentos mais comuns.

Cluster ’71 (1971)
Os vários projectos acima referenciados podem ser considerados familiares mais ou menos distantes, mas Cluster é na verdade o filho primogénito de Kluster, o seminal grupo protoindustrial de Schnitzler, Moebius e Roedelius, que entre 1969 e 1971 questionou as fronteiras que separam a música do barulho e espalhou a perplexidade em todos os que os ouviam. Reportando-se a 1969 Stephen Iliffe comenta “listen to the opening seconds of their debut album Klopfzeichen with the volume up to the max, and you’ll know why people came away from that year’s eleven Kluster concerts stunned by the alien weirdness of it all”.
Este ser vivo, e de facto a música de Cluster assemelha-se ao pulsar do coração e à circulação de fluídos nas entranhas de um animal electrónico, nasceu da amputação de um membro do organismo original – Conrad Schnitzler. A ruptura foi amigável e deu-se em Abril de 1971. Roedelius descreveu Schnitzler como “born to go solo”, e os efeitos da sua saída fizeram-se imediatamente sentir na produção musical do recém-formado duo. Para Roedelius “Conrad was the real rebel in Kluster (...) after he left, Moebius and I used the same methods but with different results (…) In our concerts, Kluster would try to build an atmosphere over a long period of time and Conrad would suddenly kill it because in the midst of a well-organized piece of sound he aimed to provoke and shock”.
Como Cluster, Moebius e Roedelius continuaram o seu estilo de vida nómada, passando por Hamburgo, Munique ou Frankfurt, ora pernoitando na sua carrinha Opel, ora descansando em casa de amigos.
A oportunidade para gravar o primeiro disco sob o nome Cluster surge numa altura em que o pânico se alastrava na indústria discográfica, com inúmeras editoras internacionais a contratarem tudo o que era alemão e tinha alguma pitada de jazz, rock ou electrónica, na esperança de que os seus investimentos capitalizassem do dia para a noite. Uma das editoras que se encontrava em apuros era a Phillips, que todos os dias perdia terreno em relação à concorrência. A Liberty/United Artists já tinha recrutado para as suas fileiras grupos como Amon Düül, Can, ou Popol Vuh e a Polydor tinha assegurado como editora subsidiária a Ohr de Rolf Ulrich Kaiser. Entra então em cena Conny Plank, que já havia produzido os Kluster. Esta personagem mítica do krautrock deu um empurrão junto dos executivos da Phillips e, em 17 de Fevereiro de 1971, os Cluster assinavam um contracto discográfico.
Em tempo recorde nasce o primeiro disco “Cluster ’71”, e igualmente em tempo recorde são deitados por terra quaisquer sonhos comerciais dos executivos da editora em relação ao projecto. Com três longas faixas denominadas “15:33”, “7:38” e “21:17”, este disco é representativo dos primeiros trabalhos dos Cluster (com C ou K) e é, nas palavras de Stephen Iliffe “the most primal and electrifying slab of West German Kosmische ever, probably”. Como qualquer disco que rompa com padrões preestabelecidos, “Cluster ‘71” não atraiu a atenção do público na altura em que foi lançado, ao que não é alheio o facto da maior parte das rádios se recusar a passá-lo. A aventura dos Cluster pelos territórios das editoras internacionais termina assim, tão rapidamente quanto havia começado, assinando posteriormente pela Brain de Gunter Korber que havia deixado a Ohr para constituir a sua própria editora. O biógrafo de Roedelius, Iliffe, descreve de forma eloquente este primeiro disco de Cluster:

“if an album is recorded but hardly a soul hears it at the time, how does it make history? By being prophetic. Three majestic tracks of extreme guitar harmonics and textural soundshaping, Cluster ’71 second guesses post-punk, hip-hop and electronica by two decades. The awesome sound of whole galaxies, heating, cooling, rotating on their axes – a flow of energy beyond human understanding – Cluster subtly guide the flow of energy…”

Cluster II (1972)
No ambiente mais auspicioso e acolhedor da editora Brain surge o álbum mais negro de Cluster. O grupo contou novamente com a assistência de Conny Plank, que realizou toda a produção e chegou mesmo a ser creditado como co-autor de “Cluster II”.
Julian Cope faz um paralelismo entre este álbum e os primeiros trabalhos dos norte-americanos Suicide, chegando mesmo a referir que é difícil imaginar que Alan Vega e Martin Rev não tenham baseado os seus experimentos sonoros na música dos alemães. O tema inicial de “Cluster II”, “Plas”, é reminescente da música electrónica experimental constante no primeiro registo, formalizando assim uma ponte entre “Cluster ‘71” e “Cluster II”. A segunda faixa, “Im Suden”, é pautada, desde o seu início, pela repetição cíclica de simples linhas guitarra processada, que entram lentamente, sobrepõem-se às já existentes, e saem de forma gradual, seguindo-se-lhe “Fur Die Katz”, até então a faixa mais curta do reportório dos Cluster contabilizando apenas 3 minutos, que finaliza o lado A do LP. O lado B começa com “Live in der Fabrik”, uma longa música de 14 minutos que explora os territórios ambientais e electrónicos numa espécie de estratosfera de pressões variáveis a que o duo se havia ambientado. As duas músicas que finalizam “Cluster II”, “Georgel” e “Nabitte”, em particular a última, são prelúdios dos seus trabalhos posteriores. Em “Georgel” é notória a presença, pela primeira vez, de um instrumento “convencional”: o órgão, e na expressionista “Nabitte” reinam os pianos e as vozes guturais. Mas que esta descrição não engane os leitores. Como alguém já referiu, ouvir os dois primeiros discos de Cluster pode causar dores de cabeça terríveis, como uma orquestra de maquinaria fabril deixada a funcionar durante a noite sem ninguém a supervisionar.


Um olhar atento ao percurso dos Cluster, permite descodificar como aspecto definidor da identidade do grupo a capacidade de estabelecer pontes criativas com pessoas e projectos que gravitaram em seu redor. Algo muito pouco original, poder-se-á inferir, a crer nas inúmeras colaborações e permutações no seio do fenómeno Krautrock. No entanto, o ciclo de vida dos Cluster – que, diga-se, permanece inacabado; o grupo esteve em Portugal em Novembro último, onde actuou no Festival Número, em Lisboa – está marcado de forma indelével a ligações pontuais da sua formação nuclear a músicos que não apenas estabeleceram coordenadas autónomas sob outras designações (os Harmonia), mas que deixaram uma influência decisiva na produção do grupo.
Zuckerzeit (1974)
Zuckerzeit, o terceiro álbum dos Cluster, juntou o duo Moebius e Roedelius a Conny Plank e a Michael Rother, que foram os co-produtores do disco. Se a ligação a Plank remonta à génese do grupo dos tempos de Kluster (com Conrad Schnitzler), a presença de Rother advém da conjuntura criativa em que o grupo se encontrava: de facto, Zuckerzeit foi gravado em plena ascenção do projecto Harmonia – que juntava os Cluster a Michael Rother, enquanto este se encontrava em período sabático dos Neu! -, aparecendo intercalado pelos dois álbuns de Harmonia, Musik Von e de Luxe.
A sonoridade do disco é de ruptura conceptual com os seus antecessores. Em Zuckerzeit, as atmosferas claustrofóbicas da electrónica urbana e atonal dos dois primeiros discos dão lugar a um uso rítmico e melódico dos sintetizadores, que espalham, com propriedade nomástica, doçura e luminosidade aos Cluster. Zuckerzeit, talvez o mais amado registo do grupo, denota um compromisso entre o intrincado e requintado universo de subtilezas de Moebius e Roedelius e o fulgor percussivo e motórico que a companhia de Rother decerto derramou. As duas faixas de abertura do álbum (Hollywood e Caramel) são disso um bom exemplo, antecipando, através das caixas de ritmos, dos sintetizadores e das guitarras, as coordenadas do electro-pop chegado uma dezena de anos mais tarde.
Sowiesoso (1976)
Dois anos depois, surge Sowiesoso. Com tradução para “sempre o mesmo”, é um disco que se apresenta com um espírito homogeneamente gracioso, devedor de um certo bucolismo pastoril que a capa do disco desde logo denuncia – Moebius e Roedelius num bosque, tranquilos, brincando com um cão – e que encaixa igualmente como uma luva na paisagem que decerto se avistaria da janela do estúdio-refúgio, na ruralidade de Frost, Niedersachsen, que desde Zuckerzeit acolhia os Cluster e os Harmonia. A mudança de editora da Brain para a Sky Records metaforiza a preceito a propensão ambiental do disco, cuja textura repleta de loops minimais e repetitivos deixa perceber a proximidade de Brian Eno, que já gravitava na órbita dos Cluster desde uma actuação ao vivo com os Harmonia, no Fabrik Club, em Hamburgo. Aliás, Eno será pedra-chave nos dois discos seguintes do grupo, creditados a Cluster & Eno – um álbum homónimo, em 1977, e After the Heat, no ano seguinte, ambos editados na Sky.
Umleitung, tema que contém um literal desvio ao mote do disco ao evoluir para uma controlada desordem cacofónica de guitarras, percussões tribais, guinchos, chocalhos, alarmes e campainhas, marca uma excepção no contexto corpo total do álbum, ao mesmo tempo que traduz o espírito do duo – depuradores de um nomadismo hippie de vanguarda.
Cluster & Eno (1977)
Cluster & Eno é uma ode ao ambient de que Brian Eno viria a ser embaixador. O disco estende-se languidamente por hipnóticos arranjos produzidos pela mão do velho conhecido Conny Plank, desta feita no seu estúdio. Colaboraram no álbum Holger Czuckay, no baixo, Asmus Tietchens nos sintetizadores e Okko Bekker na percussão e cítara, contribuindo para a criação de uma paleta sonora heterogénea assente em tranquilos exercícios de texturas diversas, mas coerentes, que uma audição atenta – e, já agora, munida de auscultadores – permite deslindar. Ademais, o disco é um exímio exercício contemplativo face às possibilidades perceptivas, evocadas com mestria nas fotografias do disco: um microfone erguido perante a vastidão do céu nublado por entre uma paisagem amorfa do campo. Creditado a Cluster & Eno surge ainda, em 1978, After the Heat, devedor das mesmas premissas estilísticas do antecessor.
Com o embalo krautrockiano já definitivamente deixado como terreno onde a dupla ensaiou as fundações do seu percurso, os Cluster editariam ainda Grosses Wasser, em 1979, onde exploraram de novo terreno mais experimental. Curiosum, no dealbar da década de 1980, surge como estranho “até breve”, povoado por uma certa bizarria de artefactos synth-pop e industriais, antes de Moebius e Roedelius abraçarem prolíficas carreiras a solo e em diversas colaborações. Já na década de 90, o duo reuniu-se novamente para editar One Hour e Live in Japan, tendo em 2006 lançado Easter Egg.

Friday, January 04, 2008

DIE LISTE # 43

Fritz Müller – “Fritz Müller Rock” (1977)

Fritz Müller Rock. Fritz Müller e a sua banda. Fritz Müller está a chegar. Mas o que significa Fritz Müller? Fritz Muller é tudo! Símbolo para o comum e o singular. Sexo e arte, quotidiano e cliché. Fritz Muller é comparável à quinta geração de computadores (e de facto é como uma organização informática), que se repara a si mesma. Fritz Muller é o símbolo universal para o Produto em geral! Fritz Muller está científica e divinamente certificado. Fritz Müller faz da irrealidade a consciência da realidade! Fritz Müller chegou. Veio em 1977, no formato deste álbum de rock conceptual, produzido por Conny Plank e apresentava-se assim nas notas de programa de uma das performances multimedia que vinha realizando desde 1974, com o próprio Conrad Plank e com Christa Fast.
Fritz Müller foi, na verdade, o nome do projecto rock de Eberhard Kranemann, o artista plástico nascido em Wismar, uma pequena cidade da liga hanseática, no norte da Alemanha, e que cresceu em Dortmund, estudando música e contrabaixo no conservatório dessa cidade e que, mais tarde, teve formação académica no campo das artes plásticas em Düsseldorf. Nestes anos de estudante conheceu Joseph Beuys que leccionava na Academia de Artes de Düsseldorf e com ele participou em 1968 numa performance que incluía ainda o grupo Pissoff. Também nessa época conheceu Ralf Hütter e Florian Schneider, os fundadores dos Kraftwerk, para os quais contribuíu com algumas prestações ao vivo no baixo. E mais tarde haveria de servir do mesmo modo os Neu!, estando registada a sua prestação no disco Neu!’72 Live in Düsseldorf, editado apenas em meados da década de 90 pela Captain Trip. Hoje em dia, Kranemann dedica-se sobretudo à arte contemporânea, realizando performances multimedia e muitos trabalhos de pintura.
O LP “Fritz Müller Rock”, também conhecido como “Fritz Müller Kommt”, é principalmente um disco de rock satírico, com as afecções caricaturais do rock’n’roll que inequivocamente sublinham o humor de Eberhard Kranemann em “Ich Kauf Mir’Ne Guitare” ou “Bratkartoffel Rock’n’Roll”: nele não faltam os solos de guitarra ou piano-jazz, as distorções, os feedbacks, os coros de fundo, a arrogância rebelde e a euforia electrizante. O subtil trabalho de Conny Plank sustenta electronicamente o delírio psicadélico de Eberhard epitomizado em “Schulwand” e em “Yes, we can” ou, de modo mais contemplativo, na deriva onírica de “Fritz Müller Traum”. É, aliás, este tema que temos estado a ouvir, ao qual se seguirá o Rock’n’roll das Batatas Assadas, isto é, “Bratkartoffel Rock’n’Roll”, e, logo depois, “Schulwand”. As referências musicais de Fritz Müller são, como não poderia deixar de ser, as da cena rock de Düsseldorf e não será estranho reconhecer a influência de Kraftwerk, Neu! ou Harmonia.

Tracklist:

A1 Ich Kauf Mir 'Ne Gitarre (2:50)
A2 Bratkartoffel Rock'N'Roll (2:14)
A3 Raketenlied (2:55)
A4 Gisela (3:22)
A5 Schulwand (3:20)
A6 I'm Sittin' By The Seaside (3:40)
A7 Yes, We Can (4:02)

B1 Postmann (3:50)
B2 Ich Stehe Morgens Um Sieben Auf (3:55)
B3 Fritz Müller Traum (8:40)

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DIE LISTE #42

Sphinx Tush – “Crashville” [Pop & Blues Festival ‘70] (1970)

O grupo seleccionado para a crónica de hoje tem uma particularidade em relação aos outros nomes até agora apresentados. Enquanto estes mereceram o seu lugar na lista de NWW devido a, pelo menos, um álbum seu, os Sphinx Tush, conquistaram a sua inclusão apenas com uma faixa: “Crashville”! Na verdade, não há outra que se lhes conheça gravada, a não ser uma versão diferente da mesma, num disco denominado Love & Peace. Mas a versão que trazemos hoje é aquela que foi gravada ao vivo no Pop & Blues Festival ‘70, em Hamburgo, e editada no disco com o mesmo nome que registou as participações de grupos alemães naquele grande evento internacional, da primavera de 1970, onde participaram, por exemplo, os ingleses Renaissance e os lendários Black Sabbath. Mas se os Sphinx Tush nos levam a este disco raro e de valor documental, esse disco devolve-nos, por sua vez, outros nomes do krautrock também incluídos na famosa lista e que partilham quase a mesma história discográfica dos Sphinx Tush. Estamos a falar dos Thrice Mice, cujas gravações, se excluirmos o seu único álbum homónimo, também só aparecem nos discos referidos – Pop & Blues Festival e Love & Peace – e dos Tomorrow’s Gift com longas participações nesses mesmos discos e para onde foi Zabba Lindner, o baterista dos Sphinx Tush, quando o grupo acabou. Faltaria apenas falar dos Frumpy, uma importante banda do rock progressivo alemão no início da década de 70, e de Beatique in Corporation, um grupo completamente obscuro cujos únicos registos são os que aparecem em Pop & Blues Festival ’70, mas nenhum deles foi incluído por Steven Stapleton ou John Fothergill na prolífica lista. Voltemos pois um pouco atrás.
Sphinx Tush era um trio, formado em 1969, pelo baterista Wolfgan “Zabba” Lindner, pelo baixista e principal vocalista Andreas Smietana e pelo guitarrista Rainer Baumann, que haveria de ser o principal guitarrista dos Frumpy. O seu som era profundamente influenciado pelo blues e pelo rock pesado que começava a nascer, havendo mesmo testemunhos de que o seu estilo roçava por vezes uma espécie de punk, muito antes de ele ter sido popularizado. As suas interpretações ao vivo eram muito apreciadas e chegaram a tocar em grandes auditórios, como o Ernst-Merck-Halle onde decorreu este festival hamburguês, para além de performances na estação de rádio NDR. A faixa “Crashville” é uma descarga eléctrica de blues inspirado e toxicamente alterado, onde Rainer Baumann começa por exibir o seu virtuosismo, acompanhado depois pelo som carregado e acelerado da secção rítmica. A versão de Love & Peace que não ouviremos hoje, por motivos de economia temporal, tem uma inspiração mais rural, parecendo chegar directamente das margens pantanosas do Mississipi, com a inclusão da gaita de beiços, e um trabalho percussivo mais rico em termos tímbricos. Uma nota também para o sentido de humor celebrado desde logo no nome do grupo, o “Rabo da Esfinge”, que encripta de certo modo o registo enigmático da sua carreira.
Thrice Mice era um sexteto, também, proveniente de Hamburgo, com um único álbum gravado entre Novembro e Dezembro desse mesmo ano, editado em 1971 pela Phillips, e praticava um rock progressivo cruzado pelo jazz, a lembrar os Xhol ou Out of Focus. A faixa que temos vindo a escutar – “Vivaldi’s revival” – é dominada pelo saxofone de Wolfgang Buhre, o principal solista da banda, num estilo que parece por vezes imitar Ian Underwood dos Mother’s of Invention.
Depois de ouvirmos, já de seguida, “Crashville” dos Sphinx Tush, um excerto final para “Sound of Which” dos Tomorrow’s Gift, um grupo originalmente orientado para o blues e para o soul, pela voz grave e rouca de Ellen Meyer, mas com outros talentos como o organista Manfred Rürup ou o percussionista e guitarrista Carlo Karges. No seu segundo álbum, “Goodbye Future”, produzido por Conny Plank, contariam ainda com o baterista fundador dos Sphinx Tush, Zabba Lindner. Ouçamos, então, “Crashville” e, logo depois, “Sound of Which”.

Tracklist:

A1 Frumpy - Duty 7:35
A2 Thrice Mice - Vivaldi's Revival 7:12
A3 Beatique in Corporation - Going Straight 3:41
B1 Tomorrow's Gift - Sound of Witch 19:58
C1 Frumpy - Floating 12:14
C2 Beatique in Corporation - Things We Said 5:21
D1 Sphinx Tush - Crashville 4:40
D2 Beatique in Corporation - Sunwave 15:15

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