KRAUTROCK E KOSMISCHE MUSIK, ECLECTISMO E AMBIVALÊNCIA
Ars longa, vita brevis.
Aforismo romano
“There is a time in the span of civilizations when creative energy and the human spirit are wholly, if briefly focussed. When this occurs culture in all its manifestations reaches its zenith. The moment passes; civilizations decline, only to be replaced by others. This process of life appears cyclic.”
Sätty, Time Zone (1973)
Com estes breves ensaios procuramos traduzir em palavras algo que deve – sublinhe-se o imperativo – ser experienciado auditivamente. Para este assunto as palavras afiguram-se no mínimo insuficientes, no máximo irrelevantes, pelo que a audição das obras citadas é condição necessária para a compreensão do texto. Trata-se do zénite de uma cultura musical, uma explosão de energia criativa num espaço e tempo muito precisos e limitados, para utilizar as palavras do artista plástico germânico Wilfried Sätty, expoente máximo do psicadelismo norte-americano.

O fenómeno krautrock ou kosmische musik que emergiu na Alemanha nos finais da década de 60, designa um cenário musical pontuado pela experimentação e pela inovação, cujas influências, fontes inspiradoras e movimentos artísticos precedentes, acabam por colocar seriamente em causa a denominação convencionada. É que não se trata apenas de música rock, ou de rock alemão para o efeito, nem apenas de música cósmica com pretensão de uma qualquer experiência mística. Esta é aliás uma ideia que se deve, em parte, ao trabalho de Julian Cope – Krautrocksampler – que, numa tentativa de produzir a primeira obra de referência sobre o seu “bem-amado” krautrock, acaba por dar maior enfoque a esta vertente particular. De qualquer forma, trata-se de uma leitura indispensável pois o livro está repleto de informação histórica, curiosidades, excertos de entrevistas e conversas com os músicos, para além de uma lista com os cinquenta melhores discos de krautrock que, escusado será dizer, é bastante discutível.

Não desejando fazer tábua rasa do que até ao presente momento os críticos, escritores, radialistas, apreciadores ou veraneantes curiosos disseram sobre este estilo musical, e almejando dele produzir um retrato fiel, procurámos a todo o custo evitar as opiniões espartilhadas e incompletas que grassam um pouco por toda a parte, decorrentes da análise unitária das suas partes constituintes, sejam elas o misticismo de alguns músicos e o pragmatismo de outros, a loucura criativa dos mais aventureiros ou o convencionalismo comercial dos mais cuidadosos.
Hipotetizamos que o facto de muitos músicos desde sempre terem recusado a designação de krautrock para os seus trabalhos decorre em larga medida da visão em túnel que inúmeras pessoas lhe devotaram ao longo do tempo, salientando apenas um ou outro aspecto singular. Sabemos que a originalidade e a diferença eram elementos bem prezados pela maioria daqueles que escreveram, nos sulcos do vinil e nos palcos dos concertos, a história do krautrock – afinal eles não queriam simplesmente ser lançados num qualquer saco pré formatado.
Este conjunto de breves ensaios, parte da premissa que este fenómeno deve ser analisado na sua globalidade, como objecto total, um vitral composto por mil e um pedaços de cores diferentes.
Quando o krautrock é encarado como um todo, a sua essência revela-se, embora esta seja de difícil tradução ou transposição para o papel. De facto, as únicas palavras que parecem descrever adequadamente este cadinho de experimentação e criação, são respectivamente eclectismo e ambivalência, duas características intimamente associadas entre si. Pelo eclectismo referencia-se a multiplicidade de influências que convergiram nesta música, entre as quais se destaca o minimalismo, o surrealismo, a música contemporânea experimental, a electrónica, o jazz e a improvisação, o psicadelismo e as ideologias políticas radicais. A ambivalência decorre da conjugação destes elementos, por vezes contraditórios, sob uma única designação comum: krautrock. A experiência de ambivalência é simples e fácil de replicar em qualquer domicílio. Basta ouvir alguns dos discos que foram catalogados e reunidos sob este singular epíteto num registo aleatório. Através deste exercício torna-se possível que dos arranjos barrocos, complexos e elaborados de Amon Duul II o ouvinte passe para o minimalismo rítmico ascético dos Neu!, e que após a audição de uma das múltiplas experiências psicadélicas de Manuel Göttsching se encontre súbita e inesperadamente no seio de um concerto politizado dos Floh de Cologne. E isto apenas para salientar a ambivalência entre os vários grupos, pois esta manifestava-se igualmente dentro de cada projecto individual. Esta propriedade dava ocasionalmente lugar a cisões, e os músicos em litígio acabavam por dar à luz outros tantos projectos de música inovadora e vanguardista. Um dos exemplos mais flagrantes é a formação inicial dos Tangerine Dream – Conrad Schnitzler, Edgar Froese e Klaus Schulze – que após a gravação do primeiro registo discográfico seguiram caminhos separados em sintonia com as suas idiossincrasias.
1. MINIMALISMO, MOTORIZAÇÃO E REPETIÇÃO
O minimalismo, enquanto movimento artístico, nasceu no seio das artes visuais, passando posteriormente a fazer parte do léxico musical através do trabalho de compositores norte-americanos como La Monte Young, Terry Riley, Steve Reich ou Philip Glass. O termo foi cunhado pelo compositor Michael Nyman em 1968, e embora já conte com algumas décadas de existência não existe um consenso generalizado em relação ao que designa. O escritor e compositor Kyle Gann identifica nove traços comuns à música minimalista, fazendo a ressalva que não existe uma única obra ou compositor que condense todos eles. Estas características são: a harmonia estática; a repetição de motivos breves; a utilização de processos algorítmicos, lineares, geométricos ou graduais; a batida constante; a instrumentação estática; a “metamúsica” ou efeitos não planeados decorrentes de processos estritamente delineados a priori; as afinações puras; a influência de músicas ou culturas não-ocidentais; e por último, uma estrutura audível.

Da repetição interminável de motivos como “Trans-Europe Express” e “Autobahn” nas letras dos homens-máquina Kraftwerk, passando pela colaboração do violino minimal de Tony Conrad com os teutónicos Faust, até aos inúmeros discos de Klaus Schulze em que este limitava a paleta instrumental a um único elemento, o sintetizador Moog, o minimalismo acabou por se infiltrar na obra de um sem número de músicos alemães deste período. Contudo, encontrou uma das suas expressões maiores num dos elementos mais significativos da obra musical dos Neu!, o ritmo motorik. Este neologismo condensa em si duas palavras alemãs, “motor” e “musik”, e refere-se à depuração do formato convencional de uma música rock, com os seus coros, versos, introduções e mudanças, para um único ritmo 4/4, que o baterista Klaus Dinger repete interminavelmente durante toda a faixa. Embora isto possa parecer bastante monótono quando escrito ou falado, quando ouvido provoca um sentimento poderoso, de um avançar fluído, contínuo e interminável, associado por vezes ao conduzir na auto-estrada. As guitarras de Michael Rother, a outra face dos Neu!, poderiam complementar e compensar o ritmo de Dinger com variações melódicas, mas isso não acontece. Rother repete ele próprio o procedimento criando drones harmónicos, tocando uma única nota ad infinitum, material sonoro que depois era sujeito a numerosos overdubs. Os resultados são notáveis. As mudanças tímbricas passam a dominar a música, por oposição às mudanças harmónicas que dão corpo ao rock convencional. O corte estava consumado, e os Neu! trilhavam auto-estradas por territórios até então desconhecidos do rock. Os norte-americanos Sonic Youth acabariam por lhes prestar tributo numa faixa intitulada “Two Cool Rock Chicks Listening To Neu!”.
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