Friday, March 21, 2008

DIE LISTE #49

Area – “Caution Radiation Area” (1974)

O nome de hoje não é uma das muitas obscuridades que preenchem a lista, bem pelo contrário, Area é quase o epónimo do rock progressivo italiano. No entanto, esta relação não goza de propriedades comutativas, pois seria demasiado redutor encerrar este criativo grupo naquilo a que vulgarmente se designa de rock progressivo. Um pouco na esteira experimentalista e de fusão dos Soft Machine – referência que os próprios confirmam – os Area destacaram-se pela sua ousadia e temeridade, não só musical como política. Aliás, uma das razões do seu sucesso em meados de setentas foi precisamente o seu empenho claro nas correntes mais à esquerda do socialismo e do comunismo e o seu internacionalismo, como prova a sua presença num Portugal pós-PREC. Quem fosse nascido nessa altura, poderia ter estado às cavalitas de um pai barbudo e de pés descalços, na Fête de l’Humanité, em Aubervilliers, ou na 1ª Festa do Avante em 1976, a assistir a um dos concertos destes Area – concertos que constituiríam o disco ao vivo lançado apenas em 1996 “Parigi-Lisbona”-, ou ainda dois anos depois, durante o mês de março, em três concertos, Lisboa, Porto e, sim, Coimbra, tocando ainda em Julho desse 1978 em Cuba!
O disco escolhido é “Caution Radiation Area”, o segundo álbum, editado em 1974 pela Cramps. Com textos e música de Patrizio Fariselli, Ares Tavolazzi e Giampaolo Tofani (o 1º e o último, nomes também incluídos na lista), o disco é uma travessia experimental e intensa pelo rock de fusão com o jazz, desnorteada pelas delirantes experiências vocais de Demetrio Stratos (outra presença por mérito próprio neste menú de bizarrias e obscuridades), num horizonte poético situado entre o internacional socialismo e a crítica musical pós-adorniana. Marca do seu modernismo, mas também da sua modernidade, o disco, por um lado, abre-se à inovação electro-acústica e liberta-se dos formatos adquiridos da canção rock popular ao deixar-se contaminar pela forma aberta do jazz, por outro, encerra-se numa crítica auto-referencial que instaura o seu poder soberano, ainda que numa lógica concêntrica de fascínio onfaloscópico. Em relação com “Arbeit Macht Frei”, o primeiro álbum, que lhes deu imediato sucesso com o tema homónimo ou com o hino apaixonado “Luglio, agosto, settembre (nero)”, “Caution Radiation Area” é, como o nome indica, uma área onde é exigida alguma cautela por parte do ouvinte seduzido pela primeira aventura do grupo italiano, não só pela sua alegada radioactividade como pela complexidade que procura uma escuta activa e persistente.
Do oriente, e muito a propósito, não fosse Demetrio Stratos um grego nascido no Egipto, uma escala atonal serpenteia pelo sintetizador ARP de Fariselli, para assim abrir o álbum, que segue a uma velocidade alucinada com o “Cometa Rossa”, numa livre incursão pelo jazz de fusão. A próxima, “ZYG (Crescita zero)” diz-nos que a “estética do trabalho é o espectáculo da mercadoria humana” e, talvez por isso, se deixe embarcar na utopia tecnológica que no futuro socialista libertaria a humanidade da sua servidão operária. Um breve regresso ao jazz electrificado, com o sintetizador EMS de Tofani e com o piano de Fariselli, para “oxidar os cabos da liberdade” ou exorcisar o poder magnético da tecnologia em “Brujo”. Volta-se o disco e é uma “Mirage? Mirage!” que se desenvolve longamente entre a experimentação electro-acústica e o puro deleite lírico da bizarria vocal de Stratos, através de cúmplices e acelerados canais rítmicos que sobrevoam o delírio tele-jornalístico quase imperceptível, mas subjacente aos espectros que se formam na aridez do deserto mediático. No fim, resta apenas a solução derradeira, a “Lobotomia”, sanando com o ruído cirúrgico as incompletudes e incompreensões que confundem os críticos do rock, nascidos depois da Filosofia da Nova Música por Adorno. Metodicamente, deixámo-nos acompanhar por essa mesma “Lobotomia” como banda sonora para estas insensatas palavras e já de seguida ouviremos “Cometa Rossa” e depois “ZYG (Crescita zero)”.

Tracklist:

1. Cometa Rossa (4:00)
2. ZYG (Crescita zero) (5:27)
3. Brujo (8:02)

4. Mirage (10:27)
5. Lobotomia (4:23)

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DIE LISTE #48

Philippe Doray – “Nouveaux modes industriels” (1978)

Muitas razões há para que se possa falar, sem grande risco de polémica, em “krautrock”, fazendo-lhe corresponder uma entidade estético-musical, mais ou menos homogénea, situada histórica e espacialmente. Do outro lado do Reno, porém, é mais difícil encontrar um equivalente contemporâneo, algo no género de um “rock choucroute”. Esta dificuldade deve-se menos à ausência de produção musical ou de qualidades técnicas e estéticas do que a uma heterogeneidade difícil de apreender e domesticar num esquema de identificação. Não faltam exemplos franceses, nesta lista que insistimos em explorar e que não deixa de nos surpreender, onde o carácter de excepção e a singularidade, ao mesmo tempo, excitam os nossos sentidos e impedem o exercício da organização semântica. O caso não seria para menos no confronto com o trabalho de Philippe Doray: lexicógrafo e linguísta, investigador na Sorbonne, criador de novas linguagens performativas e conceptor de espaços de comunicação mediados pela tecnologia, autor de jogos de palavras para pequenos e graúdos, “gyrophonista”, poeta.
O disco que se traz hoje aqui foi editado pela Scopa Invisible Records, em 1980, mas gravado entre Maio de 1978 e Janeiro daquele ano. “Nouveaux modes industriels” é o segundo álbum de Philippe Doray et les Asociaux Associés. O primeiro, o aclamado “Ramasse-miettes nucléaire”, e muito provavelmente aquele que lhes fez merecer uma entrada na colecção de Steven Stapleton, tem uma aura de culto, mas permanece-nos ainda, até ao momento, inaudito. Contudo, e sem medo de cometer injustiças, pode dizer-se que se Stapleton tivesse ouvido este segundo álbum antes de inventariar os nomes da sua lista, o nome de Philippe Doray não deixaria de ali ser incluído. Depois do que já foi dito, é redundante invocar a dificuldade de classificação para justificar o embaraço na tentativa de descrição deste disco, recorreremos, pois, a metáforas e outros tropos retóricos.
Ficamos assim à escuta de rock’n’roll moído metalicamente por instrumentos de cozinha, triturado magneticamente e embalado em latex elástico, para ser transportado num bidão de zyklon B reverberante. Pois, parece reconhecer-se a dada altura – especificamente na primeira faixa do lado B, “Musique pour résidences secondaires” - a herança de Throbbing Gristle, ainda que destilada num humor funky com sabor a água raz ou pastis Ricard. As praias da Normandia, ainda fétidas pelo odor dos cadáveres do famoso desembarque, exalam ali – em “Page de magazine” - o cheiro a crude onde as gaivotas moribundas entoam os últimos cantos metamorfoseadas em negros cisnes brilhantes. Detritos poéticos de uma burguesia pequena e enlatada em bairros associais e peripatéticos que parece querer purificar-se com incensórios fumegantes de dióxido de carbono, no ritmo sincopado de uma charanga sem carburante. Amontoadas como ferro-velho numa escultura de Kurt Schwitters, cinco faixas compõem o lado A e outras cinco o lado B, numa ilusória simetria derretida pelo efeito do calor numa placa negra de ploricloreto estriado. Mas porque as palavras são insuficientes e perversas, ouçamos o próprio disco: 1º “Latex”, a 3ª faixa do lado A; depois a já referida “Musique pour résidences secondaires”; e por fim “Que dit le chef”. Em fundo, escutávamos a última faixa do lado B, “Le petit herisson jaune”.

Tracklist:

A1 Contrechant Magnetique (5:09)
A2 Que Dit Le Chef? (4:08)
A3 Latex (3:19)
A4 Clair Et Net (2:24)
A5 Dans Le Dedale (4:44)

B1 Musique Pour Residences Secondaires (2:37)
B2 Page De Magazine (4:27)
B3 Poubelles (4:02)
B4 Le Petit Herisson Jaune (2:23)
B5 Pas De Service Apres Vente (6:46)

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DIE LISTE #47

The Decayes – “Ich bin ein spiegelei” (1978)

E agora algo completamente diferente: “Ich bin ein spiegelei” –ou eu sou um ovo estrelado. Mas o disco desta semana não é absurdo e, no entanto, a lógica do seu sentido é análoga a certos processos radioactivos de decaimento, desintegrando-se o seu núcleo através da emissão de energia em forma de radiação, sendo, ainda, certo que o seu centro magnético se desvia angularmente do centro real como a declinação magnética do norte numa bússola. E o seu humor, como o próprio nome indica, é desconcertante e estrela-se como um ovo na sertã. Até agora a apresentação deste projecto pode parecer demasiado obscura, mas não é nem de perto tão enigmático e inapreensível como a própria banda. Estamos a falar de The Decayes e do seu arguível primeiro LP “Ich bin ein Spiegelei”, editado em 1978 pela Imgrat Records, apenas com 100 cópias numeradas à mão, inseridas em capas todas diferentes, também estas pintadas à mão.
Dado o carácter elistista e propositadamente obscurantista do grupo, a pouca informação disponível parece ser meramente especulativa e o facto de existir um site oficial da banda é apenas uma falsa esperança, já que o sentido de humor obscuro e sem sentido dos The Decayes nele se espelha turvamente: prolixo em dados técnicos sobre os fenómenos de decaimento de ondas acústicas e marítimas ou prolífero em ligações para sites informativos sobre morcegos, muco e lampreias do mar, mas extremamente lacónico quanto à sua biodiscografia. Dados cruzados permitem, no entanto, ligá-los ao movimento experimental da costa oeste dos Estados Unidos, nos anos 70, e ao LAFMS, ou seja, ao Los Angeles Free Music Society, um conjunto de experimentadores musicais, inspirados pelo humor dos Mothers of Invention, mas também pelas inovações do free jazz galáctico de Sun Ra e pelas aventuras microtonais de Harry Partch. A improvisação é assim uma das marcas deste disco inusitado e por pouco inaudito. Apesar dos recursos parcos de uma produção caseira, tipicamente DIY (Do-It-Yourself), a sua liberalidade experimentalista resulta num pletórico discurso contínuo de efeitos acústicos e eléctricos originais. É fácil de perceber o que prendeu a atenção de Steven Stapleton neste conjunto bizarro e totalmente imprevisível.
O LP é constituído por apenas uma faixa em cada lado do vinil. No primeiro, Deur Müten, - e nem sequer nos aventuramos na tentativa de tentar perceber o significado desta expressão germano-flamenga – um clarinete ou talvez um saxofone imerso numa câmara aquosa de efeitos ecóicos e uma guitarra compõem o ambiente etéreo de uma ablução matinal ou de uma mera lavagem de roupa íntima, num alguidar minimal suspenso num arco-íris rileyano de ar curvo. È o que estamos a ouvir em fundo. O lado B, homónimo ao álbum, Ich bin ein Spiegelei, trilha-se primeiro entre as asperidades e rugosidades materiais do som do vinil e da fita magnética para se abrir a uma deriva psicadélica pós-industrial que percorre os interstícios de uma coluna de som, habitada como as paredes de um quarto pelos sussurros e murmúrios de uma guitarra supersaturada. É ela que vamos agora escutar.

Tracklist:

Lado A
Deur Müten

Lado B
Ich Bin Ein Spiegelei

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DIE LISTE #46

Alcatraz – “Vampire State Building” (1971)

Alcatraz. Apesar do nome, a música dos Alcatraz, o grupo seleccionado para a crónica de hoje, não é nem claustrofóbica, nem particularmente reclusiva e, no entanto, a carreira da banda não cresceu muito para além do disco que aqui se traz, devido a uma inoportuna mobilização forçada do seu baterista, o competente Jan Rieck, para as Forças Armadas Federais da Alemanha, pouco tempo depois de aquele ter sido lançado pela Philips, em 1972. Estamos a falar de “Vampire State Building”, o primeiro disco do quinteto alemão Alcatraz. Um trocadilho de gosto duvidoso, que se torna um caso sério do kitsch germânico dos anos 70 quando, na capa do disco, se transfigura num par de arranha-céus invertidos – na realidade, uma imagem duplicada do famoso Empire State Building – no lugar dos caninos vampirescos de uma boca de mulher, de onde escorrem gotas de sangue, sobre um fundo nocturno numa gradação de azul escuro. Como se não bastasse, “Oh baby, it ain’t no use running away from me” é a frase que sai de entre aqueles dentes hiper-realistas.
A música, porém, não tem nada de muito assustador: Vanilla Fudge, Black Sabbath e Uriah Heep foram algumas das primeiras influências do grupo de Hamburgo que, no início da sua carreira, tocavam ao vivo apenas versões desses grupos, até ao momento em que decidiram criar os seus próprios temas, numa fase em que o ascendente da fusão jazz-rock de bandas como Soft Machine ou The Tony Williams Lifetime tomou a dianteira nas escutas musicais de Alcatraz, que se reflectiram portanto num som de fusão entre uma tendência mais improvisacional e jazzística e uma origem hard rock que nunca perderam. Segundo os próprios, não tinham qualquer pejo em misturar fragmentos de Cannonball Adderley com elementos de Deep Purple! Para perceber a especificidade do som de Alcatraz teremos apenas de acrescentar a tudo isto a tonalidade kraut que resultou provavelmente do contexto local e talvez mais ainda do facto de este disco ter sido produzido por Kurt Graupner no Tonstudio Wümme, nada mais nada menos que o mesmo onde os Faust gravaram os seus lendários discos de inícios de 70. Reza ainda a lenda que, no segundo dia de gravação, o estúdio foi cercado por uma grande formação policial que procurava nas quintas circundantes um esconderijo terrorista, sem que isso tenha impedido que a gravação se realizasse ainda nesse dia, o que dá ao álbum uma aura heróica.
A primeira faixa do disco “Simple Headphone Mind” é uma longa faixa que resume bem o espírito de fusão deste projecto. A sonoridade do jazz é óbvia e confirmada pelos solos do saxofone de Klaus Nagurski, a leveza quase pastoril da flauta, do mesmo Klaus, avisa-nos de que estamos no rescaldo do sonho hippy e as irrupções distorcidas da guitarra eléctrica de Holst revelam as origens Hard-rock do grupo. A segunda faixa, “Your Chance of a Lifetime” transporta elementos progressivos e psicadélicos com um travo experimentalista a lembrar os primeiros anos de Soft Machine. “Where the wild things are” é a última faixa do lado A, com uma sonoridade blues mais pesada, começa a mostrar o excelente trabalho do percussionista, que se revela completamente na longa faixa do lado B que dá nome ao álbum, “Vampire State Building”, onde não falta o grande solo de bateria da praxe. A última faixa do álbum, “Piss Off”, é como o nome indica, a mais rebelde, a menos convencional e mais caótica. É essa que vamos ouvir depois de “Simple Headphone Mind”, que temos estado a escutar e que deu também o nome ao EP de 1997 que resultou da colaboração entre NWW e Stereolab. Não se tratando de uma versão dessa faixa, como muitas vezes se diz, não deixa de ser uma referência directa à lista de Steven Stapleton.

Tracklist:

1. Simple Headphone Mind (10:00)
2. Your Chance Of A Lifetime (5:06)
3. Where The Wild Things Are (3:03)

4. Vampire State Building (13:10)
5. Piss Off (3:18)
6. Change Will Come (6:08)

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DIE LISTE #45

Brave New World – “Impressions on Reading Aldous Huxley” (1972)

“Oh, que prodígio! Quantas soberbas criaturas aqui vivem! Como é bela a humanidade! Oh, admirável mundo novo, onde tal gente habita!”, exclama Miranda ao ver pela primeira vez outros homens, na ilha onde vivia exilada desde criança com seu pai, Próspero, na 1ª cena do Acto Vº de “A Tempestade” de William Shakespeare. E a exclamação repete-se quando John the Savage se confronta com esse “admirável mundo novo” de que Linda, sua mãe, o tinha mantido afastado desde o nascimento, na obra homónima de Aldous Huxley. Mas se a exclamação inocente de John exprimia ao início uma admiração genuína por um mundo perfeito que mais parecia uma utopia, ela enche-se de sarcasmo à medida que o selvagem descobre os elementos distópicos que sustentam aquela ilusão de eficácia e paz social: o hedonismo baseado no sexo estéril e promíscuo e no consumo regular e público de psicotrópicos, que afastam a depressão e a conflitualidade sociais. Foi esta a inspiração do único trabalho editado pelo colectivo hamburguês Brave New World, em 1972, com “Impressions On Reading Aldous Huxley”, numa tentativa de fazer a interpretação musical dessa descoberta.
Mas o longínquo futuro distópico que a obra de Huxley criou nos anos 30, não estaria mais tão distante quando, nesse início da década de setenta, o grupo de Herb Geller e do irlandês John O’Brien-Docker, entre outros experientes músicos locais, decidiram criar este disco que, por ser uma actualização daquela obra satírica, reflectia subtil e indirectamente uma visão crítica dessa sociedade de consumo que já tão bem conheciam. Numa época em que se tornava comum fundir os vários estilos musicais, este disco misturou também o jazz ao rock psicadélico, passando pelas inovações da electrónica e até por uma inspiração medieval, reunindo para o efeito uma parafernália de instrumentos acústicos e eléctricos que deram uma tonalidade muito peculiar a este álbum singular no panorama do rock de vanguarda feito na Alemanha dos anos 70. Mas apesar da diversidade e estranheza de estilos e arranjos instrumentais, a sua conjugação é feita de um modo coerente e consistente com o carácter alucinatório dos paraísos artificiais criados por Aldous Huxley.
Depois de um curto prólogo, com uma introdução dominada pela flauta, “Alpha, Beta, Gamma, Delta, Epsilon” apresenta, num registo simultaneamente futurista e groovy, que combina os sons electrónicos com os sopros de Reinhart Firchow, a sociedade de cinco castas que compunha o World State da ficção de Huxley. “Lenina”, a rapariga conformada, mas infelizmente apaixonada pelo inconformista Bernard, serve de inspiração à improvisação “easy listening” da faixa seguinte. É então que o álbum assume a sua motivação psicadélica, com “Soma”, o nome da droga que aliviava e alienava a população desse Admirável Mundo Novo. Aqui o disco abre-se à experimentação acústica dos efeitos de estúdio e aos sons mais inusitados do “stylophone”. A “Halpais corn dance” serve como uma transição narrativa colorida de influências étnicas para um lado B bem mais negro e trágico. É com a longa faixa “The End”- que aliás escutamos já em fundo - que o álbum desenvolve as suas qualidades cinemáticas, revelando o dramatismo implícito desde o seu início. A orquestração é densa e complexa, lembrando de certo modo o neo-classicismo vanguardista do grupo de rock belga Univers Zero, mas com um espectro tímbrico mais alargado e uma tendência improvisacional mais jazzística. Por fim, o epílogo relata, na voz de um narrador, o isolamento fatal de John the Savage num farol, afastado daquele Admirável Mundo Novo que acabara por repugná-lo. Mas por agora, fiquemos com a faixa do lado A: “Alpha, Beta, Gamma, Delta, Epsilon”.

Tracklist:

1. Prologue (1:01)
2. Alpha Beta Gamma Delta (7:38)
3. Lenina (4:21)
4. Soma (5:18)
5. Halpais Corn Dance (3:24)

6. The End (17:42)
7. Epilogue (1:28)

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DIE LISTE #44

Wolfgang Dauner – “Output” (1970)

Quem escutar a primeira faixa do álbum “Sugar Fish Drink” de NWW – Cooloorta Moon – e estiver familiarizado com o genérico destas crónicas, reconhecerá concerteza a melodia que a inicia. Steven Stapleton inspirou-se directamente no tema “My man’s gone now” do álbum “The Oimels” do excêntrico músico alemão Wolfgang Dauner, que, como não poderia deixar de ser, figura na tão famigerada lista. Mas não é esse o álbum que aqui trazemos hoje, não obstante ter sido esse que o Audion Guide escolheu. O álbum de que hoje aqui se fala é alegadamente o favorito de Steven Stapleton e, na humilde opinião do autor destas crónicas, bem mais interessante que o anteriormente referido: “Output”. Mesmo no mapa acidentado de Wolfgang Dauner, trata-se de um álbum ímpar e, como muitos dos discos já aqui trazidos, inclassificável; podendo as muitas pistas que rodeiam a sua edição revelar-se ilusivas.
O disco foi gravado em duas sessões: a 15 de Setembro e 1 de Outubro de 1970 no Tonstudio Bauer, em Ludwigsburg, com a produção de Manfred Eicher, cujo trabalho haveria de se tornar reconhecido e identificado com os discos da famosa editora de Jazz progressivo ECM. E, na verdade, este disco seria uma das primeiras edições da ECM, mas o som ousado e experimental de “Output” destoa do acabamento polido e sofisticado, quase asséptico, a que aquela editora nos habituou. Tal como não é possível falar sem polémica de jazz, ou de rock, ou mesmo de jazz de fusão para catalogar este disco de Wolfgang Dauner, que mistura de modo inovador o piano, o modulador em anel e o orgão Hohner electra-clavinet C, abrindo as portas a uma espécie de free jazz electrónico. Aliás, este músico idiossincrático e camaleónico sempre se afastou das convenções e frustrou expectativas, num percurso de vida e obra invulgares. Apesar de educado por uma tia sua, professora de piano, começou por trabalhar como mecânico, só mais tarde levando a música a sério. Tendo passado brevemente pela Colégio Musical de Estugarda, preferiu auto-educar-se e afastar-se da postura tradicional do músico-intérprete para tornar cada uma das suas performances um espectáculo de experimentação musical e teatral. Com o trio que formou, em 1963, com os músicos Eberhard Weber (cordas) e Fred Braceful (percussão e voz) – os outros dois que também marcam presença neste álbum – fez sensação em festivais de música alemães durante os anos 60, sobretudo pelo estilo ousado e não convencional das suas performances que podiam acabar com um piano incendiado em palco ou violinos destruídos ou ainda envolver as cabeças de todos os membros de um grupo coral encapuçadas com meias de nylon de forma a distorcer o seu desempenho. Colaborou com nomes importantes como Jean-Luc Ponty, Chick Corea e mesmo com Mani Neumeier, o percussionista dos Guru Guru, fazendo ainda carreira nos anos 70 com os grupos de jazz-rock Et Cetera e United Jazz and Rock Ensemble e nunca interrompendo as suas experiências de fusão, ópera, bailado nos anos 80 e 90.
O LP Output, que nunca foi reeditado em CD, é composto por seis faixas, três em cada lado do disco. “Mudations” abre o álbum de maneira nostálgica e melancólica, como se no fim de uma longa e atribulada viagem, invertendo assim a experiência do tempo na audição do disco, já que logo de seguida, “Output” irrompe abruptamente num caos criativo de electricidade e improvisação sem barreiras, onde não falta o ruído e a distorção, agoirando os tempos ainda por vir. “Bruch” simula acusticamente os cortes, os rasgões, o estilhaçamento e as fracturas nas fórmulas e estruturas musicais convencionais. Do lado B, “Nothing to declare” é a única faixa do álbum que faz lembrar o “modus operandi” do jazz com os seus jogos contrapontísticos e os seus solos, no entanto, o timbre do clavinet C, um pequeno órgão eléctrico da Hohner, dá-lhe uma sonoridade peculiar, que na faixa seguinte, “Abraxas”, nos transporta para um certo orientalismo mediterrânico. Na despedida, “Brazing the High Sky Full” funde, numa disposição alienígena mais do que cósmica, os metais percussivos com as irrupções abrasivas da distorção electrónica, num ambiente de estúdio cheio de efeitos especiais. Ouçamos agora “Nothing to Declare”, depois de termos sido acompanhados em fundo pela faixa “Output”.

Tracklist:

A1 Mudations (5:45)
A2 Output (7:42)
A3 Bruch (4:15)

B1 Nothing To Declare (10:40)
B2 Abraxas (4:24)
B3 Brazing The High Sky Full (4:25)

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Friday, March 14, 2008



A BRINCADEIRA CÓSMICA DE ROLF-ULRICH KAISER

Muita da música confeccionada na Alemanha durante o fecundo período de finais da década de 1960 até ao início da década de 1980, está envolta numa neblina de mistério. Embora os Cosmic Jokers não sejam decerto o mais obscuro exemplo musical da era a que nos reportamos - em sonoridade e em acessibilidade -, à sua génese associa-se um empolgamento empreendedor que, fora do estúdio, terá ajudado a delinear a excelência de muitos dos projectos que, como este, por aqui são destacados.

Foi do mítico estúdio de Dieter Dierks que saiu o melhor grupo de música psicadélica alemã que jamais existiu: os Cosmic Jokers. À parte a penumbra que naturalmente envolve acontecimentos passados há mais de 30 anos, o contexto das gravações do grupo contribuem, por si só, para que a linha temporal dos acontecimentos seja misturada de confusão, encontros e desencontros.
Na primeira metade da década de 1970, Rolf-Ulrich Kaiser, visionário jornalista alemão e mentor de editoras-estandarte da cena alemã, como a Pilz, Ohr ou Kosmische Musik, idealizou criar um produto musical capaz de transcender as fronteiras da realidade, editando projectos que fundiam a abordagem psicadélica e cenários místicos e esotéricos com rock espacial. A tradução prática desta ideia foi “Die Kosmischen Kuriere”, etiqueta subsidiária da Ohr que albergou os trabalhos de Sergius Golowin e de Walter Wegmuller, para além de Seven-Up, com os Ash Ra Tempel e Timothy Leary.

Kaiser foi o mentor da ideia por detrás dos Cosmic Jokers. Sob o pretexto da criação improvisada, organizou encontros de músicos, de Fevereiro a Maio de 1973, no estúdio de Dierks, em Colónia, dando-lhes em troca acesso sem restrições a alucinogéneos. Do ácido festim constavam Dieter Dierks, os membros dos Ash Ra Tempel, Manuel Göttching e Klaus Schulze e Jurgen Dollase e Harald Grosskopf dos Wallenstein. Kaiser juntou as longas horas de material e uma vez devidamente trabalhado decidiu editar os discos na sua editora Kosmische Musik, tudo isto sem os músicos terem qualquer conhecimento.
Em 1974 foram editados três discos – The Cosmic Jokers, Galactic Supermarket e Planeten Sit-In –, para além de mais duas compilações da referida editora, mais tarde também creditadas a estes brincalhões cósmicos, Sci-Fi Party e Gilles Zeitschiff.
O primeiro disco, homónimo, está dividido em duas faixas, uma para cada lado do vinil: “Galactic Joke” onde imperam os sintetizadores e as guitarras filtradas por uma panóplia de efeitos; e “Cosmic Joy” que complementa a música ambiental do primeiro tema com delírios percussivos plenos de efeitos. No segundo álbum, Galactic Supermarket, Rosi, namorada de Göttsching, e Gille Lettman, namorada de Kaiser, participam nas gravações, emprestando narrações celestiais à viagem intergaláctica. Tal como o seu predecessor, este segundo registo é composto por duas longas músicas, mas aqui os arranjos de Mellotron são bastante mais complexos, aproximando-se das orquestrações dos Wallenstein. O terceiro e último registo é consideravelmente distinto, pois trata-se de uma verdadeira manta de retalhos, com temas de curta duração compostos por pequenos fragmentos sonoros das extensas sessões de gravação, editados e misturados para dar uma ideia de continuidade ao longo do disco . Um pequeno embuste diríamos, quando comparado com a grande trama engendrada em torno deste projecto.
Reza a lenda que, algures em 1974, ao entrar numa loja de discos em Berlim, Manuel Göttsching, líder dos Ash Ra Tempel, ficou deveras surpreendido pela música, ao mesmo tempo estranha e familiar, que vertia dos altifalantes do estabelecimento comercial. Intrigado, dirigiu-se ao balcão e perguntou ao empregado que disco estava a tocar. Para seu espanto tratava-se dele próprio. A sua fotografia bem visível na capa do disco não dava lugar a qualquer dúvida. Os intentos megalomaníacos de Kaiser acabaram então por chocar com a sóbria realidade quando Klaus Schulze decidiu activar as vias legais e processar Kaiser, levando a que os discos fossem retirados do mercado em 1975, e a que Kaiser fugisse da Alemanha, precipitando também o fim do seu império discográfico.
Esquecendo o exemplo de desonestidade para com o trabalho artístico, este projecto representa, talvez, uma das facetas mais eloquentes da psicadélia alemã. Sem alguma vez terem existido, os Cosmic Jokers são uma viagem musical sob a batuta da guitarra ácida de Göttching e das manipulações sintetizadas de Schulze que, para gáudio dos apreciadores, brotou da astuta mente de Rolf-Ulrich Kaiser.

A REVOLUÇÃO ELECTRÓNICA: DE ASHRA A @SHRA

Os Ashra eram, na sua essência, o projecto a solo de Manuel Göttsching, e traduziram uma evolução natural no caminho da simplicidade, a começar pela redução do nome – de Ash Ra Tempel para Ashra – e a terminar na sonoridade, com a ênfase na electrónica meditativa a suplantar o delírio psicadélico de outrora. A transmutação foi lenta, como qualquer trabalho alquímico que se preze, e teve lugar em 1977 com a gravação de dois trabalhos, “New Age Of Earth” cujas primeiras edições foram creditadas a Ash Ra Tempel, mas que reedições nos anos seguintes apresentaram a marca registada Ashra, e “Blackouts”. Seguiram-se “Correlations” e “Belle Alliance”, em 1979 e 1980 respectivamente, que traçaram as novas coordenadas para o futuro de Göttsching: do templo cósmico para domínios estritamente electrónicos, em voga na cena de Berlim e epitomizada pelos Tangerine Dream de Edgar Froese, mas salpicados aqui e ali, como não poderia deixar de ser, com as deambulações de uma guitarra irrequieta. A década de 1980 foi um período de hibernação para o projecto que reemerge em 1989 com “Walkin’ The Desert” e “Tropical Heat” de 1991. Este último a marca o final para as gravações de estúdio, mas não se trata da última oferta de Göttsching aos adeptos da música electrónica. Depois de mais um interregno de cerca de dez anos, similar ao primeiro, os Ashra lançam três discos ao vivo “Sauce Hollandaise” (1998), “@shra” (1998) e “@shra Vol. 2” (2002).
É mais uma vez numa transição que nos situamos, desta feita com a inclusão de um simples “@” que demarca a entrada de Göttsching na era da informação e da Internet. O primeiro volume, “@shra”, foi gravado ao vivo no Club Quattro em Osaka e no On-Air-West de Tokyo, editado no Japão pela profícua Captain Trip e na Alemanha pela Think Progressive. Ao visualizar o alinhamento constante na capa do disco, qualquer indivíduo, minimamente inteirado da história do Krautrock, fica de “orelhas no ar”. Para além de Göttsching, encontramos Lutz Ulbrich, dos Agitation Free, nas guitarras e teclados, e Harald Grosskopf, dos Wallenstein, nas percussões, acompanhados por um desconhecido Steve Baltes no baixo. A tónica dos momentos iniciais do disco é apelativa, revelando um ambiente sonoro sombrio cuidadosamente sintetizado, uma electrónica opressiva que paradoxalmente traz implícita a promessa de libertação. Contudo, cinco minutos volvidos e eis que surge uma batida 4/4 que teima em não desaparecer ao longo de todo o disco, e que deita por terra todas as expectativas criadas em torno dele. Uma batida que desperta o adepto de tunning que existe, bem fundo, no inconsciente de cada um de nós, e que se traduz numa vontade tremenda em adquirir um novíssimo tubo de escape de alto rendimento para a nossa viatura.
Este pequeno elemento acaba por arruinar um álbum que até é bem cotado entre os círculos dedicados a estas sonoridades. Para não finalizar esta crónica de forma demolidora, concedamos a Göttsching o benefício da dúvida. Em primeiro lugar, em 1998 vivia-se em pleno êxtase da música de dança e do fenómeno clubbing, e afinal o contexto era uma discoteca japonesa que, a julgar pela reacção e aplausos do público que se podem ouvir, estava satisfeita com a música dos alemães. Em segundo lugar, o que hoje soa pessimamente mal poderá ser agradável num futuro mais ou menos próximo, mais ou menos distante. Até que isso aconteça o melhor será mesmo esperar sentado, quem sabe, ao som dos primeiros discos de Ashra.