Wednesday, November 28, 2007

5. MÚSICA CONTEMPORÂNEA EXPERIMENTAL: O CONTRIBUTO DE STOCKHAUSEN

A nomeação directa de influências está sujeita a considerável indeterminação atendendo ao carácter volátil do fenómeno e à vasta miríade de eventuais conexões passíveis de serem destacadas. Reduzir a influência que a música contemporânea experimental teve no krautrock apenas ao legado de Stockhausen será, pois, altamente redutor. Mas, de facto, Stockhausen foi uma das figuras cimeiras do experimentalismo electrónico na música, estando o seu nome gravado na galeria dos mais notáveis e influentes compositores da música contemporânea do século. O seu trabalho adquiriu visibilidade – apesar de sempre conotado com as vanguardas – durante o final da década de 50 e na década de 60, precisamente a época da explosão da música electrónica, com a disseminação de estúdios em vários países, pelo que a sua associação aos vários projectos que germinaram na Alemanha alguns anos volvidos aparece como óbvia. Aliás, mais do que mera afinidade geográfica, Stockhausen foi mesmo professor de composição de alguns dos mais influentes nomes da cena alemã, tais como Holger Czuckay (Can) ou Conrad Schnitzler (Tangerine Dream, Kluster e Eruption).
Após a II Grande Guerra Mundial, como alguém disse, uma outra frente da Guerra-Fria avançava: França e Alemanha, reeditando anteriores batalhas, adoptavam posturas distintas na abordagem à música electrónica. Em França, Pierre Schaeffer liderava o GRM (Groupe de Recherches Musicales), sediado em Paris, privilegiando a captação e junção de fragmentos de sons gravados e depois modificados em estúdio – a música concreta; em Colónia, sob orientação de Herbert Eimert, estabelecia-se o Studio für Elektronische Musik, em 1951, que surgiu afiliado à rádio da Alemanha Ocidental (WDR) e dedicando-se à total seriação da música como forma de remover o mais possível os sentimentos do processo de composição – a “música electrónica pura”. É neste contexto que Stockhausen emerge. Apesar de mais tarde colaborar e vir a dirigir os estúdios de Colónia, é curioso o facto de o compositor alemão ter sido um ilustre visitante e aprendiz do GRM, corria o ano de 1952, sendo então estudante de Oliver Messiaen. Aí terá tido as suas primeiras experiências com a edição de fitas magnéticas, das quais resultaram Étude (1952), uma peça de pouco mais de três minutos que influenciou decisivamente o autor.
As composições de Stockhasusen reflectiam o seu interesse pelo estudo depurado do fenómeno sonoro em si mesmo, isto é, pela sua estrutura formal e molecular. Este purismo estético, resgatado à Teoria de Campo Unificado da Física, a par do galopante avanço tecnológico dos recursos de estúdio disponíveis, permitia-lhe um controlo total dos vários parâmetros do som. Compositor e som fundem-se, gerando-se uma dinâmica aglutinadora do ritmo, da melodia e da harmonia.
Studie II foi uma das peças de fita magnética manipuladas na primeira performance ao vivo do estúdio de Colónia, a 19 de Outubro de 1954. Tratou-se do primeiro trabalho de música electrónica para o qual foi escrito uma pauta.
Em 1956 surge Gesang der Jünglinge, obra de influência vital para a música electrónica da década de 50. A composição incluiu sons acústicos, tal como as produções dos colegas de França, rompendo com a música electrónica pura dos seus colegas de Colónia. O objectivo foi a fusão dos componentes do som gerado por um coro juvenil com tons e timbres equivalentes electronicamente produzidos, juntando-os como um elemento musical fluido e interligado de grande complexidade. A peça, de 13 minutos, revela um grande dinamismo nas oscilações entre fragmentos de sons compostos e as vozes corais retiradas de um texto do Livro Bíblico de Daniel. Inicialmente pensada para ser apresentada na Catedral de Colónia, os intentos de Stockhausen esbarraram na relutância da Igreja em permitir a inclusão de tal parafernália no espaço sagrado…
Stockhausen foi um dos compositores que mais terá contribuído para a renovação do estúdio da WDR no final da década de 50, levando até ao limite os seus recursos técnicos. Advogou a ultrapassagem das limitações do serialismo, defendendo a composição e decomposição do som, numa espécie de construção do mesmo. Por esta altura Stockhausen estabelecera alguns critérios ou princípios que governaram a sua prática composicional, um manifesto em favor do controlo total do som e da sua construção.
Durante a década de 60, a natureza dos seus trabalhos muda significativamente. Já director dos estúdios da WDR, interessa-se pelas performances ao vivo das suas composições com orquestras, talvez como reflexo do seu interesse no estudo da propagação espacial do som – Kontakte e Gruppen –, mas também como resposta a algumas das limitações apontadas à música electrónica da época, que se prendiam com o seu efeito aparentemente amorfo. Numa segunda versão de Kontakte, um pianista e um percussionista tocaram fita gravada, conferindo “orientação e perspectiva à experiência auditiva, funcionando como sinais de trânsito no espaço ilimitado do recém-descoberto mundo dos sons electrónicos”. Estas palavras de Stockhausen anunciavam a revolução da composição da música electrónica com o advento dos sintetizadores, que ofereciam uma enorme variedade de sons para manipular. O grande interesse centrava-se, então, na execução ao vivo dos equipamentos electrónicos.
A primeira peça de música electrónica ao vivo composta por Stockhausen foi Mikrophonie I (1964-65), na qual uma espécie de gongo de enormes dimensões é percutido por dois executantes com vários objectos, enquanto outros dois recolhem as vibrações com microfones e mais dois controlam a respectiva transformação electrónica dos sons.
Hymnen (1966-67) é para muitos a obra mais importante do compositor alemão. Com 113 minutos de duração, a peça consiste na manipulação de vários hinos nacionais, modificando-os, fazendo colagens, adicionando interferências; tudo com um sentido preciso e planeado das sequências dos sons.
Perante a magnitude das suas obras e do legado experimental deixado, facilmente se reconhece influência de Stockhausen em vários projectos alemães. A audição de Tago Mago ou de Ege Bamyasi, dos Can; os primeiros discos dos Faust; os trabalhos electro-acústicos dos K(C)luster deixam pistas que permitem vislumbrar isso mesmo. Porém, a marca integrada mostra-se sobretudo conceptual, traduzindo horizontes desbravados no que à inovação musical contemporânea diz respeito.

Sunday, November 25, 2007

DIE LISTE #39

Nine Days Wonder – “Nine Days Wonder” (1971)

No final do século XVI, William Kemp, um célebre actor cómico da época isabelina, fez o percurso de Londres a Norwich todo a dançar, vencendo assim um desafio que lhe havia sido lançado. Demorou nove dias a realizar tal “maravilha”, mas o que ficou do feito foi uma expressão inglesa, “nine days’ wonder”, que simboliza, sobretudo, o enfado que tal feito poderá ter provocado ao fim daqueles nove dias. Nine Days Wonder é, pois, algo que encanta por pouco tempo, mas é também o nome de mais um “cadáver exquisito” incluído nessa lista de que temos vindo a fazer a imetódica autópsia.
Incipientemente formados desde 1966, só em Janeiro de 1971 Walter Seyffer reuniu a sua banda internacional para gravar o seu primeiro álbum. O irlandês John Earler assegurou os saxofones, a flauta e um pouco de guitarra para acompanhar a sua voz; o austríaco Mutschlechner criou as linhas de baixo; Rolf Henning, o outro alemão da banda para além do próprio Seyffer adicionou mais uma guitarra e os parcos sons de piano; enquanto o britânico Martin Roscoe tocava bateria, por vezes duplicada pelas percussões do líder da banda. Mas o rol de artistas não ficaria completo se não se falasse da viola de gamba do convidado Martin Lill e do indispensável trabalho de estúdio de, nada mais nada menos que, o famoso produtor Dieter Dierks. Parece ter sido o suficiente para incluir este projecto na enciclopédia de krautrock dos irmãos Freeman. Em abono da verdade, deve dizer-se que a verve experimental e a bizarria deste disco homónimo dos Nine Days Wonder, empacotado em espuma de poliuretano verde, respirava o “zeitgeist” alemão do início da década de 70. Mas não pode obviar-se à evidência das influências anglo-saxónicas: as experiências de fusão de Frank Zappa, o blues psicadélico de Captain Beefheart – note-se por exemplo o sotaque americanizado do vocalista ou a transformação eléctrica da voz-, mas também, o rock progressivo dos King Crimson ou até alguma inspiração vinda de Canterbury. A singularidade do projecto provém no entanto do modo como concentram todas estas influências numa mesma faixa, a qual pode variar imprevisivelmente a qualquer instante, camuflada apenas pela perícia técnica dos seus membros virtuosos.
Duas faixas longas permitem começar e acabar o álbum, separadas por outras duas, mais curtas, no fim do lado A e no princípio do lado B. Mas aquelas, as mais longas, acabam por ser uma colagem de diferentes segmentos, com instrumentações e estilos muito diversos, desde o rock’n’roll ao puro experimentalismo electro-acústico. A primeira faixa, por exemplo, que escutamos já em fundo, é dominada por uma clara inspiração americana, que começa com Don van Vliet e acaba com Zappa, mas que não exclui a folclórica inclusão da flauta e da viola de gamba em “Puppet Dance”, nem alguns solos de bateria ou a improvisão jazzística do saxofone em “Square”. Destaque-se, ainda, a lunar e histérica incursão surrealista de “Morning Spirit”. Continuemos, então, a escutar Fermillon e as suas derivações.

Tracklist:

Lado A
1. Fermillion (15:48)
2. Moss Had Come (3:27)

Lado B
3. Apple Tree (6:45)
4. Drag Dilemma (12:47)

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Friday, November 16, 2007

DIE LISTE #38

Brainstorm – “Smile a while” (1972)

“Sorri um momento” é o apelo do disco desta semana. Mas o mais provável é um esgar ou, ainda mais previsivelmente, um surto de vómitos em vez de um sorriso, quando os olhos se deparam com a capa do primeiro álbum dos Brainstorm. Na verdade, o gosto duvidoso dos alemães é uma característica bem conhecida, mas a indecência chocante do trabalho gráfico deste grupo, oriundo da rica cidade termal de Baden-Baden, valeu-lhes já a inclusão em várias listas de “piores capas de discos de sempre”! Talvez seja um pouco de exagero, pois afinal não passa senão de uma simples fotografia do grupo em lingerie branca e com um pouco de “blush”. Mas não deixa de ser significativo, revelando um sentido de humor peculiar que é uma marca expressiva deste projecto também na música, influenciada desde logo por Frank Zappa, um outro humorista musical, e pelas experiências eclécticas de Canterbury. Num primeiro momento, a ascendência inspirada de “A Saucerful of Secrets” poderia explicar que se tivessem chamado Fashion Pink, mas a herança dos Mothers of Invention teria causado uma declinação para Fashion Prick e uma corrrespondente deriva para o ecletismo nervoso entre o rock e o jazz de fusão. Em 1972, apenas o bom senso da Spiegelei Records terá evitado uma catástrofe editorial, ainda que não suficiente para evitar a reprodução fotográfica na capa de “Smile a While”, forçando-os a mudar o nome para Brainstorm.
Camaleónica, a capacidade e velocidade de transformação não foi, nos Brainstorm, meramente onomástica. A formação musical dos membros do grupo permitiu-lhes, em “Smile a While”, fazer variações rítmicas rápidas, experimentar arranjos instrumentais complexos, oscilar entre a euforia da improvisação e a ponderação das notas no pentagrama com o à vontade que os anos de conservatório lhes haviam concedido. A maestria musical é proporcional à versatilidade e variedade instrumental de todos os membros do grupo, mas é inevitável mencionar o saxofonista que não só afirmou elegantemente a sua presença ao longo de todo o álbum, como se destacaria mais tarde por ser um dos membros dos famosos Guru Guru: Roland Schaeffer. Se, no entanto, a etiqueta do krautrock, apesar de serem uma banda de rock do sudoeste alemão com uma atitude experimental e de terem sido a incubadora desse membro dos Guru Guru, seja discutível, não pode deixar de se notar a influência dos Soft Machine ou dos Caravan, sobretudo neste álbum, que quase lhes permitiria ser a secção germânica de Canterbury. Desde a primeira faixa, “Das Schwein trügt” – O porco engana – que é como quem diz “Der Schein trügt” – As aparências iludem – que o humor e o estilo não enganam: tratar-se-á de um momento lúdico, cheio de trocadilhos verbais e rítmicos. Destacaremos um tema longo e triplo do lado A: Bosco Biatti (1º segmento) Weiss (2º segmento) e, finalmente, Alles (o último). O saxofone de Schaeffer domina a primeira parte, depois Joe Koinzer desenvolve um solo de bateria para um regresso violento e manifesto ao som da Cantuária que nem as experimentações vocais de Eddy van Overheidt permitem encobrir.
Gozemos.

Tracklist:

Lado A
1. Das Schwein Truegt (4:40)
2. Zwick Zwick (4:40)
3. Watch Time Flow By (1:29)
4. Bosco Biati WeiB Alles (8:59)

Lado B
5. Snakeskin Tango (2:20)
6. Smile A While (15:34)
7. You Are What's Gonna Make It Last (live) (3:31)
8. Don't Forget (live) (0:25)

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Thursday, November 15, 2007


DIE LISTE #37

Annexus Quam – “Osmose” (1970)

Annexus Quam: esta estranha locução em latim que carrega o sentido de uma reunião, junção ou conexão foi escolhida, em 1970, para o projecto inicialmente denominado Ambition in Music (segundo “A crack in the cosmic egg”), quando este decidiu fundir vários géneros (desde o rock psicadélico ao jazz-rock, passando por alguns elementos étnicos) e estilos musicais (os de cada um dos seus sete membros), num mesmo processo e acontecimento de criação musical. Oriundos de Kamp-Lintfort, nos arredores de Dusseldorf, tocavam desde 1967 uma espécie de rock hippie, embora já no ano seguinte se houvessem juntado a uma banda local evangélica de metais que renovou o espectro tímbrico do grupo, atirando-o no sentido do jazz e da improvisação. Mas foi um espírito de fusão que inspirou “Osmose”, o primeiro álbum gravado dos Annexus Quam nos finais do verão de 1970, um dos primeiros discos do krautrock a ser editado pela famosa Ohr Records. Para além da ousadia experimental e vanguardista empenhada no esforço musical deste disco, destaca-se a original capa do álbum que podia ser dobrada numa pirâmide que desmultiplicava as suas imagens, talvez para exprimir a enigmática fusão osmótica que o tornou possível e anunciar o malogrado silêncio de uma lista ao qual foi remetido durante muitos anos, até à sua reedição em CD de 1999. O teor jazzístico de “Osmose” haveria de ser reelaborado durante várias prestações ao vivo em festivais de jazz, para fazer o grupo mergulhar assumidamente nos caminhos do free-jazz no segundo e último álbum “Beziehungen” de 1972.
“Osmose” é decomposto em quatro partes de improvisação, três no lado A e uma longa “pièce de résistance” que ocupa todo o lado B. Quase todos os sete elementos do grupo - excepto Ove Volquartz, que apenas toca saxofone - são multi-instrumentistas, dando o seu contributo tanto nas percussões como nas vozes, distribuindo-se individualmente pelo baixo, clarinete e órgão, bateria, flauta, guitarra eléctrica, viola e trombone. Todos participando numa, por vezes etérea, noutras lisérgica, divagação pelo rock e o jazz de fusão, a fazer lembrar aqui e ali algumas inovações de Canterbury, ainda que a referência psicadélica dos primeiros anos de Pink Floyd pareça estar ainda mais presente em todo o álbum e sobretudo nas manipulações ecóicas do estúdio. O início do álbum é lento e paquidérmico como a reverberação dos passos de um elefante no interior de uma bolha de latão. O segundo e mais curto segmento respira o rock pop mas desliza qual areia trepidante numa garrafa de pirolitos. A última faixa do lado A recomeça lenta, numa melancolia que funde o blues com o jazz até que a meio se perde, definitivamente, na deriva psicadélica que havia sido sugerida timidamente nas faixas anteriores. No entanto, se as transições entre faixas são abruptas e permitem duvidar da unidade do álbum, as passagens pelos vários momentos dentro de cada faixa – pois é aí que a osmose acontece - são feitas de um modo orgânico e fluido, acabando por devolver a consistência necessária à sustentação das quatro peças como um todo. O lado B é preenchido pela peça mais longa e mais densa e é dela que vamos ouvir um excerto. Aqui se sobrepõem como camadas líquidas o jazz, a trip e até, surpreendentemente, um aroma hispânico despoletado pelas castanholas e pela improvisação na viola. Desfrutemos.

Tracklist:

Lado A
1 Osmose I (4:15)
2 Osmose II (3:11)

Lado B
3 Osmose III (10:36)
4 Osmose IV (18:20)

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Thursday, November 08, 2007


ACID MOTHERS TEMPLE no meu Mercedes é maior que o teu mas que poderia ter sido numa carrinha Volkswagen estampada do mesmo tamanho que a tua

Nada melhor do que uma expectativa de incerteza para confirmar, depois, a magnitude da presença num evento que teima em não se afastar da consciência. A verdade é que, pensei eu, como vão acomodar-se cinco ou seis (eles parecem-me sempre muitos) psicadélicos e exuberantes indivíduos num tão exíguo espaço? Por outro lado, a possibilidade de estar literalmente embrenhado com eles afigurava-se óptima para absorver a excelência sonora que decerto emanaria, para além de, no fundo dos nossos espíritos, assentar a evidência de que tal cenário apenas encaixa como uma luva nas premissas fundadoras dos Acid Mothers Temple (AMT), que aludem à junção de espíritos livres que não cabem no mainstream. Com confirmações mais ou menos fiáveis da dúvida do local do concerto, foi pela Ribeira portuense que o prelúdio se desenrolou. Admirando a vista para a imediata e metálica ponte centenária D. Luís e a atravessar um túnel de pedra granítica onde tresandava a urina e outros fluídos corporais sobre os quais não me atrevo a reflectir muito, chegámos ao nosso destino – o pequeno bar “O meu mercedes é maior que o teu”, onde estava agendado um de dois concertos dos AMT em Portugal (o outro concerto havia tido lugar dois dias antes na Galeria ZDB). O senhor que estava à porta rapidamente confirmou o concerto, pois nas imediações nada o faria prever, acenando com o amigável preço do bilhete, uns míseros 7 euros para ver e ouvir um dos expoentes máximos do psicadelismo nipónico, o que se revela sempre um relaxante natural para a mente e, principalmente, para a bolsa.

Logo à entrada do bar, num pequeno recanto parcamente iluminado, os AMT tinham montado o seu bazar. O mercador de serviço era Atsushi Tsuyama que, apesar do sorriso permanentemente estampado na sua cara, não apregoava aos sete ventos os seus produtos com quaisquer chamarizes, técnica aprimorada ao longo de décadas pelas peixeiras do mercado do Bolhão não muito longe dali. Também não necessitava de o fazer. As relíquias que trazia eram suficientemente apetecíveis e apelavam por si próprias: inúmeros discos de AMT dos quais se destacava um “remake” do original minimalista de Terry Riley “In C”; o projecto “Acid Mothers Temple SWR” (Stones Women & Records) com Yoshida Tatsuya dos Ruins; “Andromelos” uma colaboração ainda desconhecida para os ouvidos ocidentais de Kawabata Makoto com Yamazaki Maso dos Masonna, Christine 23 Onna e Space Machine; o registo ao vivo “Acid Mothers Gong” em Nagoya com Daevid Allen dos Soft Machine e Gong; e outros álbuns a solo de Makoto como “Inui Vol.4” ou “Hot Rattlesnakes” atribuído a “Kawabata Makoto & The Mothers Of Invasion”. Nesta pequena amostra somos confrontados com a incrível proficuidade deste colectivo que torna difícil ou impossível, mesmo ao mais fanático melómano, de seguir com detalhe a vasta produção editorial.

Mas situemo-nos: desde 1995 que este grupo freak-out para o século XXI se associa a variadas editoras internacionais de modo a tornar acessíveis as suas edições, mas também como uma válvula de escape que permite suster o jorro das explorações sónicas que vai criando, quer enquanto soul-collective fundador (Acid Mothers Temple & The Melting Paraíso U.F.O., sendo as últimas letras um acrónimo para Underground Freak-Out), quer dando corpo a demoníacas mutações (AMT & The Cosmic Inferno), ou ainda a um incontável cardápio de colaborações e a uma energia cósmica que catapulta o seu mentor, Kawabata Makoto, da produção a solo até ecléticas inclusões noutros grupos. Perante as múltiplas facetas dos AMT, ainda pensei em averiguar se teriam integrado na sua discografia um registo da suposta ligação ao culto Aum Shinrikyo (tido como o responsável pelos ataques com gás Saryn no metro de Tóquio em 1996) fruto de uma suspeita da população de que na comuna hippie dos AMT se esconderiam os elementos da dita organização.

Por entre as compras no bazar e os acordes do tímido Tenaz (que chamou a atenção pela baixa auto-estima revelada, por citar Derek Bailey e por não ter tornado penosa a espera até aos AMT), os olhares centram-se então numa pequena personagem de feições orientais, vestida de cabedal, sentada no chão a um canto, no vão da escada em espiral que conduzia ao segundo andar do bar. Um olhar mais atento e chegamos à conclusão que se trata, nada mais, nada menos, do que Kawabata Makoto. Dirijo-me para falar com ele, baixo-me um pouco e desejo-lhe um bom concerto. Este responde com dois ou três sons guturais e imperceptíveis. Enquanto aguardo pelo concerto vou olhando ocasionalmente para Makoto que, quando os cabelos negros cobriam por completo a face, desaparecia nas sombras, como que num passe de mágica. Por mais atento que o meu olhar se tornasse, os esforços eram inglórios para conseguir decifrar o seu estado de espírito, pois a sua pose facilmente indiciaria um estado estuporizante induzido por substâncias (perspectiva coerente com o protótipo do grupo rock psicadélico ocidental), como também deixava perceber-se nalguma posição meditativa, ou simplesmente sentado a relaxar… Na verdade, nem parecia estar em condições para se levantar, quanto mais tocar um concerto! Pensei no slogan da família AMT (“Do whatever you want, don’t do whatever you don´t want!”) e adaptei-o fielmente ao Makoto que vislumbrava. Qualquer que fosse a resposta a estas questões que não interessam nem ao menino Jesus, a verdade é que ali estava o protótipo do guru, esperando pacientemente pelo momento certo para derramar os seus ensinamentos sobre os aprendizes. É nesta sugestiva ambiguidade que vou pensando na cosmologia dos AMT e na imprevisibilidade do seu significado: ora plácidos e cândidos, planantes; ora abruptos samurais avassaladores, abrasivos.
Quando os olhos voltaram ao recanto de Makoto, este já o havia abandonado. Como um oráculo que ainda agora fazia crer nas vastas faculdades da energia cósmica que com certeza ele estaria a invocar, algo que apenas pode ser imaginado, pois quando se olha para confirmar…ele já lá não está. Olho para o palco e lá estão eles finalmente: o “cosmic joker” Tsuyama Atsushi no baixo e vozes, o “dancin’ king” Higashi Hiroshi nos sintetizadores, guitarra eléctrica e vozes, o “latino cool” Shimura Koji na bateria, e o “speed guru” Kawabata Makoto na guitarra eléctrica e vozes.

Metaforizando a sua posição central no alinhamento, os primeiros sons emanam do sintetizador cósmico de Higashi, preparando o ouvinte para algo que não tem preparação possível. A textura e envolvência destes pequenos interlúdios sintetizados electronicamente, que acabam por pontuar os vários momentos entre músicas do concerto, não são de todo estranhos a qualquer pessoa que tenha ouvido pelo menos um disco de Acid Mothers Temple. Estes são, aliás, uma das imagens de marca da sua música, que funciona como um elo de ligação entre o delírio terreno e a evocação à vastidão planetária na procura do nosso lugar. O aviso é dado quando o volume das ondas sonoras do sintetizador de Hiroshi gradualmente começa a decrescer dando por fim início ao assalto sonoro. O virtuosismo de Tsuyama que, encostado a uma parede, debitava frequências subterrâneas de rebentar qualquer amplificador, associava-se aos ritmos motóricos da singela bateria de Koji, que pareciam estender-se num espaço sem fim, até uma simbiose quase perfeita. Do outro lado do pequeno palco estava o transfigurado Makoto que, desafiando a percepção, antropomorfizava a sua guitarra, punindo-a com iluminada mestria e velocidade estonteante. Afinal ele estava na posse de todas as suas faculdades, ou talvez estivesse ele próprio possuído. As suas palavras talvez ajudem a compreender o que se passava:

Music, for me, is neither something that I create, nor a form of self-expression. All kinds of sounds exist everywhere around us, and my performances solely consist of picking up these sounds, like a radio tuner, and playing them so that people can hear them. However, maybe because my reception is somewhat off, I am unable to perfectly reproduce these sounds. That is why I spend my days rehearsing.
Where do these sounds come from? Who is sending them out? That is not something for me to know, and neither is there any way that I could find out. I simply believe that they come from the 'cosmos'. (Maybe other people would call God the source). Since I was a small child I have been prone to hearing ringing sounds in my ears and other sound phantasms. At the time, I believed that these were messages aimed directly at me from a UFO, and so I would gaze up at the sky. But once I started playing music myself, I came to feel that these noises were a kind of pure sound. And I promised myself that one day I would be able to play those sounds myself


Kawabata Makoto (2000)


Um dos pontos altos – se é que estes podem ser discriminados – foi “Pink Lady Lemonade”, um dos temas mais conhecidas do obscuro e enciclopédico repertório dos AMT, pontuado por inúmeros crescendos e momentos de quase silêncio que se conjugavam numa espiral delirante da qual parecia ser impossível sair, ou melhor, impossível de querer sair. As parcas palavras que eu próprio entretanto vociferava resumiam-se às requisições de cervejas, não fosse um contacto social mais elaborado concorrer com os devaneios imateriais em que flutuava. Nesta altura do concerto já toda a percepção de espaço, mas principalmente de tempo, se tinha perdido irremediavelmente. O concerto acabou subitamente, sem encore, por volta da uma e meia da manhã, mas tanto podia ser ainda onze e trinta e cinco e a noite estar a começar, como sete horas e o dia estar a nascer.

No final, tempo ainda para nova incursão no bazar entretanto reaberto onde surgiu a oportunidade para falar com Atsushi Tsuyama. Disse-lhe que gostava muito do seu disco “Starring As Henry The Human Horse!” e ele agradeceu, sorriu e mostrou o seu novo disco a solo por entre os inúmeros títulos para venda. Já no exterior do bar, e enquanto procurava integrar uma experiência que sem dúvida irá ficar gravada na minha memória com caracteres doirados, eis que surge ao largo um realmente conectado Kawabata Makoto para se sentar num dos bancos com vista para o rio Douro. A sua companhia era um pequeno laptop com a marca da maçãzinha. Trocámos umas palavras sobre o concerto e os próximos destinos da digressão. A sua simpatia, o seu discurso articulado, e o computador que tinha no seu colo, revelavam mais uma faceta do seu carácter, a de homem ou músico contemporâneo, depois do buda sentado e da besta possuída em palco. Nós prosseguimos, a tentar colocar o que se passara num local apropriado.

Tuesday, November 06, 2007

DIE LISTE #36

Igor Wakhévitch & Salvador Dali – "Être Dieu" (1974)


O nome seleccionado da lista esta semana é Igor Wakhévitch. Compositor francês de origem ucraniana, cujo talento foi desde muito cedo reconhecido não só pelos seus professores, entre os quais Olivier Messiaen, como pelos prémios que ganhou desde a adolescência. Trabalhou no final dos anos 60 com Pierre Schaeffer e Pierre Henry nos estúdios do GRM onde explorou as possibilidades da música concreta. Tal como Henry, criou música para os bailados de Maurice Béjart com quem colaborou numa atmosfera que favoreceu a inclusão da cultura musical psicadélica. Este percurso rico e variado fez com que os seus álbums dos anos 70 exprimissem uma transversalidade de interesses, desde a composição clássica mais tradicional para orquestra até à exploração mais vanguardista da electrónica. A singularidade e qualidade de qualquer das suas obras – Logos (1970), Docteur Faust (1971), Hathor (1974), entre outras – seria suficiente para que merecesse a sua inclusão na lista famigerada que temos vindo a descobrir nestas crónicas. Mas o disco que foi seleccionado para hoje, sendo uma composição deste Igor Wakhévitch, não estaria concerteza na colecção arrolada em 1978 nem mesmo na adição feita em 1980, pois embora gravado no ano de 1974 só seria editado em vinyl, em 1985. Contudo, se não esteve, deveria ter estado! Trata-se de "Être Dieu", um triplo álbum resultante da colaboração entre o compositor já referido e Salvador Dali, o pintor catalão que dispensa apresentações.

Numa tarde de 1927, no Café Regina Victoria, em Madrid, Salvador Dali e o seu amigo Federico Garcia Lorca começaram a escrever o libretto para a maior ópera de todos os tempos e que, como não poderia deixar de ser, oriunda do génio hipertrofiado de Dali, deveria exprimir a magnificência apoteótica do gesto da criação. No entanto, só em 1974 o pintor recuperou a ideia para realizar a sua ópera-poema em seis partes, encomendando ao escritor espanhol Manuel Vasquez Montalban um libretto que deveria ser redigido segundo as suas especificações e atribuindo a Igor Wakhévitch a responsabilidade pela composição musical. Durante a gravação nos estúdios da EMI, o caprichoso Dali resolveu improvisar e não respeitar o que havia sido escrito por Montalban, pois "Dali nunca se repete", argumentava ele, reforçando a originalidade e irrepetitibilidade do acto criador, aliás o tema que estava precisamente em causa nesta ópera ou opus magnum.

Être Dieu: opéra-poème, audiovisuel et cathare en six parties conta então a história da criação do mundo, no delírio paranóico-crítico de Salvador Dali em que o pintor é o próprio Deus, Brigitte Bardot é uma alcachofra, onde Catarina-a-Grande e Marilyn Monroe fazem um strip tease, mas onde não falta a revolução francesa, os irmãos Max, Mao Tsé Tung, o secretário-geral das Nações Unidas, Gilles de Rais e Joana D'Arc, num desfile paródico dos mitos e obsessões do pintor, do qual este só poderia ser resgatado pelo amor professado à sua esposa e musa inspiradora, Galà. A composição épica de Wakhévitch equilibra magistralmente as experiências psicadélicas e electro-acústicas com a manipulação de fita magnética e a interpretação da Orquestra Sinfónica de Paris, dirigida por Boris de Vinogradow. Delphine Seyrig, actriz conhecida dos filmes de Luís Buñuel, empresta a voz, com Alain Cuny, Catherine Allegret e Raymond Gerôme, a algumas personagens, ao lado da verborreica e quase omnipresente improvisação do excêntrico pintor. Apesar da grandiosidade desta produção, a obra tem estado coberta de uma grande obscuridade à qual não será alheia a sua inacessibilidade, quer pela raridade da sua edição quer pelo preço astronómico dos originais. "...Triste risque que d'être plus que personne..: être dieu." Na impossibilidade de escutar a integralidade da ópera, ouçamos um excerto da abertura [1ª faixa].

Tracklist:

Lado A Ouverture Et Première Entrée (22:12)
Lado B Deuxième Entrée Ou La Lutte Avec l'Ange (22:12)

Lado C Troisième Entrée et Première Sortie (24:25)
Lado D Le Rêve Passe (23:33)

Lado E Quatrième Entrée Ou La Profession De Foi (27:42)
Lado F Final Et Seconde Sortie (25:00)

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