Thursday, August 30, 2007

TANGERINE DREAM: DE DALI À DEMOCRATIZAÇÃO DA MÚSICA ELECTRÓNICA

Na história da música alemã de finais de 60 e inícios dos anos 70, o cunho anglo-saxónico – pelo menos na sua vertente rock – esteve presente sobretudo através de Zappa, Velvet Underground ou de Hendrix. Se os Beatles e os Stones funcionaram em muitos casos como marco antagónico, certo é que “Lucy in the Sky with Diamonds” ofereceu inspiração nominativa a um conjunto de rapazes para baptizarem o seu projecto musical. Tangerine Dream designou o grupo que em finais de 60 se formaria e que viria a marcar de forma indelével o curso da música que a Alemanha deu a conhecer. Mais do que os irrepreensíveis registos deixados, o grupo encabeça a lista de notáveis que contribuíram para que os artefactos electrónicos deixassem apenas de figurar nos circuitos académicos eruditos dos compositores, para integrarem definitivamente a paleta de recursos de uma nova vaga de artistas. Com uma produção que se mantém até hoje, aqui daremos conta da primeira década de vida do grupo, aquela que se assumiu como a mais profícua no seu enquadramento com a cena musical alemã daquele período.

Edgar Froese, um estudante de Belas-Artes russo em Berlim, havia sido guitarrista dos The Ones um par de anos antes. Tocavam um blues-rock psicadélico, tratando-se de uma experiência musical de alguma importância, tendo o grupo editado um disco, talvez o passaporte para concertos fora da Alemanha. Numa dessas ocasiões, Froese conheceu Salvador Dali, em Cadaques, chegando mesmo a criar o pano de fundo sonoro de algumas exposições daquele artista espanhol, que, de resto, terá deixado um inspirador legado de imaginação surrealista num Froese fervilhante de ideias.
Com o desmembramento dos The Ones, Froese, em 1967, inicia os Tangerine Dream por caminhos improvisados de inspiração surrealista e psicadélica. Da formação inicial, para além de Edgar Froese (mentor do grupo e o único que nunca deixou de lhe pertencer, não obstante a sua produção a solo), constavam Kurt Herkenberg, Lanse Hapshash, Volker Hombach e Charlie Prince Durante um ano e meio sucederam-se sessões e concertos em vários locais, gerando um significativo culto em seu redor. Do itinerário performativo, destaque para o Zodiak Arts Free Lab, espaço underground onde pululavam algumas das personalidades criativamente mais inspiradas da cena berlinense, entre os quais os seus fundadores, Hans-Joachim Roedelius, Klaus Schulze e Conrad Schnitzler. Apesar de ambos estarem envolvidos noutros projectos – Schnitzler com os Kluster, juntamente com Roedelius e Moebius; Schulze com os Psy-Free –, foi com os dois últimos que Froese se juntou, em 1969, para formar o alinhamento responsável pelo primeiro álbum do grupo.
Ao longo do percurso dos Tangerine Dream, é unânime o reconhecimento das várias “fases” que marcaram a direcção da sonoridade do grupo. A fase inicial, de carácter experimental e largamente influenciada pelo minimalismo americano de Terry Riley ou Steve Reich, inclui os álbuns de Electronic Meditation (1969) a Atem (1973), todos editados pela Ohr. O disco seguinte, Phaedra, tido como a pedra de toque do grupo, inicia uma nova etapa da vida do grupo, pautada por um sentido melódico pronunciado, onde os sintetizadores, sequenciadores e uma produção cada vez mais apurada desempenham papel decisivo, facto a que não será alheio o contrato com a Virgin.

Electronic Meditation denota todo o background experimental dos seus artífices. Efeitos de guitarra, violinos desconcertantes, e profusão electro-acústica tornam o disco simultaneamente primitivo e futurista, um paradigma da faceta mais experimental da música alemã da época, conjugando o som sombrio e árido com uma apurada limpidez conceptual. Klaus Schulze, com formação em Psicologia e então aluno de composição electrónica de Thomas Kessler, produz enérgicas e divergentes investidas percussivas. Conrad Schnitzler, que fez parte da sua formação com Stockhausen, mais velho e multifacetado artista (estudou Arte Moderna em Dusseldorf), representa a face mais bizarra e atonal da sonoridade do álbum.
Após este primeiro registo, a composição do grupo foi sofrendo sucessivas alterações, quer pelo desejo dos seus elementos em prosseguirem o seu trabalho musical noutras direcções – Schulze deixou o grupo para iniciar os Ash Ra Tempel; Schnitzler saiu pouco depois, para formar os Kluster com Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius e também o projecto Eruption, antes de se assumir um esteta da produção electrónica e multimédia em reclusão –, quer também devido a um Froese controlador e inflexível no caminho a seguir. Para os seus lugares entraram Christphe Franke (ex-baterista dos Agitation Free) e também Steve Schroeder para as teclas, participantes de Alpha Centauri (1971), o álbum seguinte do grupo, um sucesso comercial com mais de vinte mil cópias vendidas na Alemanha. Gravado ´nos estúdios de Dieter Dierks, em Colónia, contou com os convidados Udo Dannebourg (flauta e voz no final do épico tema-título do disco) e Roland Paulick (efeitos do sintetizador VCS 3). O disco evoca sons estelares, espessamente envoltos em camadas sintetizadas que crepitam circularmente. “Sunrise in the Third System”, a abrir, cria a atmosfera planante necessária para “Fly & Colision of Comas Sola” penetrar e fazer ecoar a kosmische musik num interminável túnel espacial que se desmorona numa frenética sessão improvisada de flauta e percussão. “Alpha Centauri” é uma ode hipnótica e talvez mais leve, quiçá a abrir a porta desta faceta para o futuro.
Zeit, editado no ano seguinte, apresenta-se como uma sinfonia espacial de quase 80 minutos dividida em quatro suites, dando corpo ao “tempo” conceptual que o encerra. O disco contou também com colaborações especiais: Florian Fricke (dos Popol Vuh), que manipulou o gigantesco Moog, e um quarteto de cordas de onde se destaca Jochen Grumbcow (dos Hölderlin) no violoncelo. Apesar de nebuloso, a sonoridade é mais etérea e quente e marca um passo adiante no estilo que Alpha Centauri deixara antever. Durante as gravações do álbum, Steve Schroeder abandonou o grupo, entrando Peter Baumann para as teclas.
Atem, do início de 1973, colheu os louros da crescente mediatização do grupo, tendo sido o disco do ano em Inglaterra nomeado pelo gosto influente de John Peel. O álbum segue as directrizes do seu antecessor, mas transmitindo uma atmosfera menos sombria onde elementos percussivos conferem um certo pendor ritualístico (notório na explosão inicial do tema de abertura do álbum, “Atem”, e em “Whan”, a última faixa). Pelo meio, as tranquilas incursões ambientais dominam, com sonoridades próximas dos trabalhos que Froese editaria pouco mais tarde a solo.

Friday, August 24, 2007

POPOL VUH – Hosianna Mantra (1972)

Dos Popol Vuh poder-se-á dizer que transportaram algumas das coordenadas que um pouco mais tarde viriam a pautar o designado new age. Se Klaus Schulze e Manuel Götching, na segunda metade da década de 70, depuraram o conceito sobretudo a partir de sintetizadores, Hosianna Mantra, em 1972, trouxe a possibilidade totalmente acústica de evocações espirituais e divinas num registo etéreo, onde a estética contemplativa se apresenta de forma deliciosamente bela.
De facto, dos Popol Vuh, mais do que a exótica associação espiritual sugerida pelo nome – trata-se de um dos poucos livros que restam da civilização Maia, que compila um conjunto de lendas de carácter religioso que explicam as origens daquele povo –, retém-se de forma clara o cruzamento permanente das referências orientais da sua música com uma estrutura ocidental de composição, manifestando-se também pela combinação linguística do próprio título do álbum. Em Hosianna Mantra, o terceiro disco deste grupo formado em 1969, as notas de piano deixam adivinhar a formação clássica de Florian Fricke, o fundador do grupo, tal como o sentido melódico e rítmico em permanente desconstrução denuncia o seu envolvimento na cena jazz-rock de Munique em meados da década de 60 (onde acompanhou Manfred Eicher, mais tarde o patrão da ECM).
Hosianna Mantra marca a primeira incursão dos Popol Vuh em registos inteiramente acústicos. Um passo que a massiva utilização das infinitas possibilidades do Moog nos dois primeiros álbuns (Affenstunde e In Der Gärten Pharaos) não deixava antever, mas que introduziu a voz celestial da soprano coreana Djong Yun e a mestria de Conny Veit na guitarra, à época com apenas 17 anos, mais tarde fundador dos Gila. Destaque também para o oboé de Robert Eliscu e para o travo orientalizante conferido pela tambura do etno-musicologista Klaus Weise.
O disco abre com Ah!, a convocar desde logo atmosferas meditativas, com o piano de Fricke a assumir papel de destaque. Kyrie parece cosmicamente configurado: o enquadramento espacial dos acordes profundos da guitarra de Veit acolhe pela primeira vez a voz angelical de Yun, “protegida” por linhas de oboé e pelo drone hipnótico da tambura. O tema-título, Hosianna Mantra, traduz um arranjo mais estruturado que apresenta toda a elegância do disco, confirmando nos temas seguintes um apelo simultaneamente clássico e de vanguarda. O disco transporta-nos para um mantra encantado, celestial.

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